Descubra as riquezas culturais do Cerrado Central

Introdução

O Cerrado Central é um dos biomas mais ricos e diversos do Brasil, abrigando uma imensidão de belezas naturais e culturais que encantam e surpreendem. Com paisagens que variam entre campos abertos, veredas e matas ciliares, ele é lar de uma biodiversidade exuberante, onde se destaca a presença imponente da onça-pintada, símbolo da força e da preservação ambiental. No Centro-Oeste, especialmente, há importantes iniciativas voltadas à proteção desse felino ameaçado, essenciais para o equilíbrio ecológico da região.

Mas o Cerrado Central não é feito apenas de fauna e flora: ele pulsa cultura em cada canto. No leste de Mato Grosso do Sul, por exemplo, floresce uma rica tradição de literatura oral, composta por causos, cantigas, lendas e sabedoria popular transmitida de geração em geração. São histórias que revelam a alma do povo do Cerrado, sua relação com a natureza e seus modos de vida.

Memória coletiva e herança cultural

A memória coletiva do Brasil Central é profundamente marcada por narrativas de caçadores e pescadores, que contam suas experiências entre realidade e fantasia. Essas histórias muitas vezes envolvem seres míticos como o Nego D’Água, guardião dos rios que protege ou pune conforme o respeito dado às águas; o temido lobisomem, que habita o imaginário noturno das comunidades rurais; além dos grandes protagonistas da fauna local que geram inúmeros causos contados de geração para geração, do jaú que comia gente aos grandes embates com a onça pintada, o nosso maior felino.  As narrativas populares reforçam laços sociais e resgatam saberes ancestrais, mostrando como a oralidade é uma poderosa forma de manter viva a identidade regional.

Essa herança oral mantém viva a identidade das comunidades locais, ao mesmo tempo que contribui para a valorização e preservação do bioma. Descobrir o Cerrado Central é mergulhar em um universo onde natureza e cultura se entrelaçam de forma única. Valorizar essa região é reconhecer a importância de sua preservação para o Brasil e para o mundo.

A Diversidade Étnica e Histórica do Cerrado

O Cerrado é berço de uma diversidade humana tão rica quanto sua fauna e flora. Muito antes da colonização europeia, a região já era habitada por diversos povos originários, como os Xavante, Krahô, Karajá, Terena, entre outros. Esses povos mantêm até hoje uma relação profunda com a terra, com práticas sustentáveis, saberes medicinais e rituais que fazem parte do patrimônio cultural imaterial do Brasil.

Com a chegada dos colonizadores portugueses e o avanço da exploração do interior do país, especialmente durante o ciclo do ouro e a expansão do gado, o Cerrado passou a receber também a influência de europeus, africanos escravizados e migrantes de outras regiões. O encontro dessas diferentes culturas resultou em uma identidade regional única, marcada por sincretismos, tradições orais, religiosidade e uma culinária singular.

O modo de vida no sertão central brasileiro é fruto dessa mistura. A vida nas roças, a convivência comunitária, os festejos populares e o cuidado com a terra refletem uma sabedoria coletiva construída ao longo de séculos. Cada comunidade carrega histórias e práticas que ajudam a compreender o Cerrado não apenas como paisagem, mas como espaço de resistência, pertencimento e cultura viva.

Manifestações Populares e Tradições

As manifestações populares do Cerrado são expressões vivas da identidade cultural de seus povos. Em cada canto da região, é possível encontrar festas tradicionais que misturam devoção, música, dança e teatro popular. A Folia de Reis, por exemplo, é uma celebração marcada por cortejos coloridos, cânticos e visitas às casas, simbolizando a jornada dos Três Reis Magos. Já a Congada e as Cavalhadas encantam pelas vestimentas, dramatizações e ritmos que recontam histórias de fé e resistência.

Além das festas, o Cerrado é rico em tradições orais, mantidas vivas por meio da contação de causos — narrativas que mesclam realidade, fantasia e humor. Esses relatos, passados de geração em geração, preservam a memória das comunidades e revelam traços do imaginário popular.

Seria o fim das narrativas orais e dos contadores de histórias?

A partir do advento da popularização da televisão, a contação de histórias foi perdendo espaço e quebrando essa tradição.  Lembrando que a televisão surgiu no Brasil em 18 de setembro de 1950, com a inauguração da TV Tupi, em São Paulo, fundada por Assis Chateaubriand. Inspirado pelo modelo americano, Chateaubriand trouxe equipamentos e técnicos dos Estados Unidos para montar a primeira emissora do país. No início, a TV era um luxo acessível apenas à elite, com programação ao vivo e curta. Durante a década de 1960, com a popularização dos aparelhos, a televisão começou a chegar aos lares da classe média. A transmissão em cores estreou em 1972, marcando um novo passo tecnológico.

O meio rural conseguiu manter a contação de história por mais tempo, em rodas de vaqueiros em torno de uma fogueira, nos ensinamentos da benzedeira em torno do fogão a lenha e em conversas com os anciões. Já nas pequenas cidades interioranas, moradores mais antigos como os ferroviários, caçadores, pescadores e trabalhadores rurais também foram detentores desse conhecimento tão rico. E, por fim, em meados de 1990, vários pesquisadores coletaram através da pesquisa acadêmica um vasto repertório proveniente da Literatura Oral nas regiões do cerrado e do Pantanal. Graças a tais pesquisas, hoje nos é possível conhecer as narrativas que resguardaram a memória coletiva e a identidade cultural de cada região.

Conheça o mito do Enterro, uma das narrativas orais mais difundidas no leste de Mato Grosso do Sul.

A literatura oral do leste de Mato Grosso do Sul é rica em mitos, lendas e causos rurais transmitidos de geração em geração pelos contadores de histórias. Um dos mais intrigantes é o mito do Enterro, uma narrativa envolta em mistério e superstição, numa época em que não havia televisão nem internet, a escuridão era iluminada por lamparinas e, não havendo estabelecimentos bancários, o dinheiro e tesouros eram enterrados. Os enredos se tornam ainda mais interessantes no contexto em que o fazendeiro morre e não quis deixar a herança para seus filhos e familiares. Segundo a tradição, um morto aparece em sonho para alguém da comunidade, revelando onde escondeu um tesouro antes de morrer.

A pessoa escolhida, muitas vezes sem explicação clara, carrega a responsabilidade e o peso da revelação, porque deve ir desenterrar o tesouro sozinho (a), à meia-noite, no meio da mata, geralmente o local é marcado por uma árvore típica da flora local, seja um ipê, um coqueiro ou uma mangueira. O morto exige que o tesouro seja desenterrado à meia-noite, sem a presença de mais ninguém. Esse é o ponto crucial da tríade: o morto (alma penada), o tesouro e o escolhido. Quem tenta quebrar a regra e leva companhia, diz-se, acaba amaldiçoado ou vê o tesouro desaparecer.

Os contadores de histórias locais narram esses causos com riqueza de detalhes, pois a tradição é forte nas comunidades rurais e entre os moradores mais antigos das regiões interioranas, onde a oralidade preserva e renova o mito. Entre os quais, podemos citar os ferroviários, que trabalharam na antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, uma das mais importantes vias férreas do interior do país, construída no início do século XX para integrar o estado de São Paulo a regiões remotas do Mato Grosso. Inaugurada em 1905, a ferrovia nasceu com o propósito estratégico de consolidar a presença nacional em áreas de fronteira e promover o desenvolvimento agrícola.

A linha partia de Bauru (SP) e avançava rumo a Corumbá (MS), conectando centros urbanos e abrindo caminho para o escoamento de riquezas naturais. Durante décadas, foi vital para o transporte de passageiros, gado e grãos. Seu traçado enfrentou inúmeros desafios geográficos, atravessando o cerrado e áreas pantanosas. A chegada da ferrovia impulsionou o surgimento de diversas cidades ao longo do seu percurso, tal como o município de Três Lagoas – MS, localizada bem na divisa entre os estados de Mato Grosso do Sul com São Paulo. Foi ali que o ferroviário Izaías Antônio de Souza narrou esta versão do Enterro.

Mito do Enterro: o pote de ouro.

“Um fazendeiro tinha enterrado um dinheiro e ele faleceu sem deixar sua fortuna a nenhum herdeiro em vida. Aí, um lavrador estava deitado numa rede, bem tranquilo e dormindo. Quando foi de manhã, ele falou pra mulher assim:

-Hoje veio um sonho, essa noite e falou pra buscar um dinheiro num lugar assim, que está enterrado o pote de dinheiro debaixo de uma árvore do cerrado.

A mulher respondeu:

-Ah, então vamos lá tirar.

E o marido disse:

-Ah, eu não vou não. Se você quiser ir lá tirar, aí você vai, chame o compadre e vai, ele tem coragem. Você tem coragem, vai mais ele e tira.

Daí a mulher foi chamar o compadre:

-Vamos, compadre, vamos lá tirar o pote, tirar o enterro!

Ela foi mais o compadre. Chegou lá, era meia-noite em ponto, no local marcado por um pé de ipê. Cavaram, cavaram, cavaram, cavaram, cavaram. Não achavam. Foram cavando, cavando, cavando… Acharam uma beirada, era o pote! Arrancaram aquele pote do tesouro, quando arrancaram assim, estava pesado. E o outro lá, na casa dele, dormindo tranquilo lá na rede, só esperando eles chegarem. E lá no mato, quando eles abriram a tampa do pote, era puro marimbondo, dos furiosos, ficaram os dois machucados. E aí, falaram assim:

-Vamos chegar lá e jogar nele, pra largar de ser preguiçoso, porque ele não quis vir buscar, né?

E foram com esse pote nas costas, mas era marimbondo. E chegaram lá, um gritou:

-Toma aqui, seu preguiçoso, aqui o dinheiro, o ouro!

Jogaram o pote sobre ele na rede e saíram correndo, a mulher e o compadre. Mas quando bateu na rede e caiu no chão, arrebentou o puro ouro! E o marido gritou:

-Vem, mulher, vem cá, vem mais o compadre! Vem catar o ouro, vem!

Mas eles se mandaram. E algumas horas depois, quando eles voltaram, souberam que o escolhido pegou todo o ouro e o resto tinha desaparecido. Ele conseguiu, porque ele era o escolhido!”

Essa versão do mito do Enterro foi registrada por escrito pela pesquisadora Lucy Nakamura, que coletou e resgatou centenas de histórias orais em meados de 1990, na região leste de Mato Grosso do Sul, compondo um rico acervo na dissertação de Mestrado intitulada Literatura Oral: as narrativas populares no município de Três Lagoas (UFMS). Um repertório obtido através de entrevistas realizadas com os moradores mais antigos da região, sobre as histórias que eram transmitidas apenas oralmente.

Conclusão

Ao longo deste artigo, vimos que as riquezas culturais do Cerrado são tão valiosas quanto sua biodiversidade. Mais do que um bioma repleto de vida, o Cerrado abriga um patrimônio imaterial formado por povos diversos, tradições ancestrais, festas populares, saberes comunitários e uma forte espiritualidade que molda o modo de vida das pessoas da região.

Valorizar essas expressões culturais é reconhecer a identidade e a resistência das comunidades que, mesmo diante dos desafios impostos pela modernização e pelo avanço tecnológico, seguem preservando seus modos de viver, celebrar e contar suas histórias. Cada festa, prato típico, música e história contada ao pé do fogão de lenha carrega consigo séculos de memória e sabedoria popular.

Por isso, o convite que deixamos aqui é simples, mas essencial: conheça, vivencie e compartilhe a cultura do Cerrado. Apoie iniciativas locais, participe de eventos culturais, valorize o artesanato regional e ajude a manter viva essa herança que é de todos nós. O Cerrado pulsa cultura — cabe a nós ouvir, sentir e preservar esse coração do Brasil.

E você, conhece outra versão do mito do Enterro?

O mito do Enterro é um dos mais difundidos entre os moradores mais antigos da região do cerrado central. Há o enterro que foi descoberto dentro de uma casa, perto do fogão de lenha; há o caso da mulher do vaqueiro que ficou atormentada pela alma do fazendeiro, porque ele indicava o local do tesouro entre dois coqueiros, porém, somente ela enxergava os tais coqueiros e o marido a internou numa clínica psiquiátrica; e também há os casos em que o escolhido teve a coragem de desenterrar o ouro e ficou rico, prosperando do dia para a noite.

Se você conhece outra narrativa do mito do Enterro, deixe a sua versão nos comentários!

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