A tradição oral e a cultura popular.
O Cerrado possui vozes que ecoam entre as veredas, nas rodas de conversa ao entardecer, nos quintais, nas cozinhas e nas festas populares. São histórias que não estão nos livros, mas que vivem na memória de quem as ouviu dos mais velhos, contadas com emoção, riso, assombro ou sabedoria. Essas são as vozes do cerrado: guardiãs de uma herança rica, transmitida de boca em boca, geração após geração.
A tradição oral é uma das formas mais profundas de manter viva a cultura de um povo. No Cerrado, ela pulsa em causos engraçados ou misteriosos, em mitos que explicam o mundo, em cantigas antigas, rezas de proteção e ditados populares cheios de sabedoria. Ouvir essas vozes é mais do que resgatar o passado — é manter acesa uma chama de identidade e pertencimento.
Em tempos de pressa e tecnologia, escutar as histórias dos mais velhos é um ato de resistência cultural. Registrar, valorizar e compartilhar essas narrativas é fundamental para que as novas gerações conheçam as raízes que sustentam a riqueza humana do Cerrado. Neste artigo, convidamos você a entrar em contato com essas vozes do cerrado — memórias vivas que contam muito mais do que simples histórias: elas revelam a alma de uma terra.
A Tradição Oral como Guardiã da Cultura
No coração do Cerrado, onde as palavras correm soltas entre o estalar da lenha e o cheiro de café passado no coador de pano, vive uma tradição que resiste ao tempo: a oralidade. É por meio dela que a cultura se perpetua, que os saberes são passados, que a identidade regional se fortalece. Contar histórias não é apenas entreter — é preservar, educar, emocionar e, sobretudo, manter viva a memória coletiva de um povo.
Nesse cenário, destacam-se os mestres da cultura e contadores de histórias — figuras fundamentais para a preservação das tradições. São homens e mulheres que carregam consigo um baú invisível de saberes, acumulados ao longo da vida e compartilhados com generosidade. Muitos não sabem ler ou escrever, mas são verdadeiras bibliotecas vivas. Cada fala, cada gesto, cada silêncio carrega um pedaço da história da região.
Preservar a tradição oral do Cerrado é reconhecer esses mestres como patrimônio humano, valorizar seus ensinamentos e garantir que suas vozes continuem ecoando pelas trilhas do tempo. Porque enquanto houver quem conte — e quem ouça — a cultura continuará viva, pulsando no ritmo das palavras faladas com o coração e voltadas à ancestralidade.
Causos e Histórias Populares do Cerrado
Se tem algo que não falta no Cerrado é causo bem contado. Esses relatos, meio verdade, meio invenção, fazem parte do jeito de viver do povo da região. São histórias cheias de graça, susto ou ensinamento, narradas com aquele sotaque gostoso, pausas certeiras e um brilho nos olhos de quem viveu — ou jura que viu — cada detalhe. Os causos populares são heranças faladas, que revelam a alma brincalhona, sábia e mística do Cerrado.
Os causos têm como tema as histórias de assombração, as histórias de caçadores e pescadores, os causos de enganos e rurais. Neles, é possível vislumbrar uma comunidade num espaço e tempo que desenham modos de viver, crenças, ensinamentos e humor – são retratos vivos de uma cultura que valoriza a oralidade como forma de manter seus laços, ensinar seus valores e, acima de tudo, celebrar a vida em sua simplicidade mágica. Segue um causo de engano, contado por Wandwald Araújo de Souza (1938):
Causo de engano
As ressurreições da mulher de Dominguinhos
“Mas existem pessoas que morrem e voltam. Eu tenho uma história boa, mas isso daí é uma coisa, é uma história verídica. Na Noroeste, na Estrada de Ferro Noroeste, tinha um guarda à noite, aqui em Três Lagoas, ele tinha o apelido Dominguinhos, há muitos anos atrás. E a mulher dele foi ruim para Araçatuba, muito ruim para Araçatuba. Chegou lá em Araçatuba, internou a mulher e tal. Aí, passou uns cinco dias, ele recebeu um recado de que a mulher tinha falecido. Mas esse caso aconteceu mesmo! A mulher morreu. Bom… E lá no hospital levaram o corpo da mulher e puseram no necrotério, naquele mármore lá, e deixaram lá, e avisaram o marido, né? Àquele tempo, tinha o trem passageiro da Noroeste, e esse trem, eles cruzavam numa dessas estaçõezinhas aqui, ele vinha de Bauru, passava em Araçatuba às tantas horas. E saía daqui um outro às tantas horas. No meio do caminho, entre Três Lagoas e Araçatuba, eles cruzavam, eles cruzavam, um vinha e o outro ia, cruzando na estação. Aí, quando o Dominguinhos soube aqui, ele pegou m trem daqui e foi pra lá. E a mulher, lá, ela voltou à vida, voltou e fugiu do hospital, e pegou o trem e veio, justamente o trem que cruza. Eles cruzaram aqui na determinada estação que eu não me lembro aonde que era, ele foi e ela veio pra cá. Aí, chegou lá, ele falou:
-Olha, eu sou o marido da fulana que faleceu, assim, assim…
Aí, quando chegou lá no necrotério e a mulher não estava. Aí foi aquele rebu danado, já ligaram pra polícia, movimentaram aquilo e isso. Aí, quando ele estava lá vendo o que aconteceu com o corpo da mulher, me parece que comunicaram daqui pra lá que a mulher estava aqui. Aí, ele voltou pra cá, chegou e realmente ela estava vivinha, estava viva! Tudo bem. Bom, aí essa mulher viveu mais uns meses, e de repente, ela caiu doente de novo aqui em Três Lagoas, caiu doente e foi internada aqui no hospital. Aí, internaram ela aí, e ela morreu, morreu novamente. Bom, aí ele pegou, naquele tempo fazia o velório, não sei se você se lembra disso, botava o corpo em cima da mesa, na casa mesmo, não tinha o velório municipal como hoje. Aí colocaram o corpo da mulher em cima da mesa, aí estava todo mundo, eu não fui no velório, mas estava todo mundo, um do lado do outro, né, conversando. Você sabe como é em velório, em velório todo mundo conversa, conta piada, fala mal da vida do outro e tal Aí, estavam lá conversando, lá pelas tantas, meia-noite, sei lá, a mulher levanta e fica sentada em cima da mesa! Voltou à vida de novo! Cada um procurou uma janela, uma porta, pulando pelas portas, pelas janelas, e se mandaram. Já pensou, lá pela meia-noite, uma hora, a mulher se levantar e se sentar em cima da mesa? Eles pularam, fugiram e foram embora. A mulher voltou à vida de novo! Aí eia viveu mais um pouco, mais uns tempos, aí a mulher ficou ruim de novo, foi pro hospital e a mulher morreu, morreu de novo, morreu, morreu. Aí levaram, fizeram o velório lá e aí ficaram mais tempo ainda pra ter certeza, né, pra ver se ela não voltava, né? Conclusão: aí a mulher morreu mesmo, morreu de vez. Aí fizeram o velório, fizeram tudo, o enterro, enterraram a mulher. Mas esse caso aconteceu mesmo, é um caso verídico esse daí, aconteceu mesmo”.
Lendas e Mitos do Cerrado
As lendas são narrativas que cruzam o limite entre o real e o imaginário. Nascem do cotidiano, mas ganham asas na imaginação popular, carregando ensinamentos, medos, esperanças e códigos de convivência com o mundo. No Cerrado, essas histórias fantásticas não são apenas entretenimento. Algumas figuras lendárias acabam se tornando os anti-heróis por marcarem a memória coletiva de maneira oposta à da história oficial. É o caso de bandoleiros e matadores, famosos por oferecerem seus serviços aos fazendeiros em conflitos pela disputa pela terra, na época do coronelismo.
Dentro das influências indígenas e africanas, a mitologia se desapega de locais específicos e da linha do tempo histórica e despontam na defesa da fauna e da flora. Uma das figuras mais emblemáticas nas matas do cerrado é o Caipora, que em tupi-guarani significa habitante do mato. Dizem que aparece para quem maltrata os animais ou destrói as árvores sem necessidade. Entre os contadores de histórias do cerrado, o caipora também é o protetor de animais, assim como o Pé de Garrafa e o Macaco Gorila. O militar reformado Jurandir Queiroz (1938) narrou sobre uma anta que escapou do caçador e da morte: “Nós tivemos um companheiro que foi esperar anta no jirau, a anta veio, chegou no barreio, começou a lamber o sal, levantou a cabeça para um lado, para outro, mas ele atirou na anta. Ele se certificou, viu a anta caída e muito sangue, desceu do jirau e foi tomar um café. Quando foi buscar a anta, chegou lá e não existia nada, nem sangue não existia. Era o caipora.”
Outra personagem envolta em mistério e reverência é o Nego D’água, muito conhecido na vila de pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná, no município de Três Lagoas – MS. Considerando-se a presença de muitos migrantes que vieram das regiões norte e nordeste, os pescadores costumam afirmar que o Caboclo D’água veio do rio São Francisco e, na região de cerrado, tornou-se conhecido como Nego D’água, um protetor dos rios, que pode atacar o barco daqueles que de alguma forma não respeita a natureza, contudo, por vezes, pode atrair os cardumes de peixe possibilitando a fartura para os pescadores.
O ferroviário aposentado Abraão Ferreira da Silva (seu Bento) nascido em 1912 conheceu um Brasil ainda sertão e sua sogra era uma benzedeira muito respeitada pela comunidade do bairro Feijão Queimado, no leste de Mato Grosso do Sul. Ele descreveu o Nego D’Água assim: “Já vi o Nego d’água, ele é peludo, troncudo e pequeno, um pouco maior do que um anão. Ele é corpulento e já foi visto aqui pelos rios, porque tudo o que existe no seco, também existe debaixo da água”.
Nessa linha, ilustraremos outra versão do Enterro, contado por Jurandir Queiroz (1938). Essa é mais uma versão do Enterro, a tríade entre uma alma penada, um tesouro e um escolhido. As narrativas orais têm como pano de fundo uma parte do contexto histórico da vida dos personagens (quando narrado em 1ª pessoa) ou mesmo da vida dos narradores, sejam eles participantes ou até mesmo céticos.
Mitologia.
Bigamia e o Enterro.
“Existem vários contos de assombração. Eu conheci um amigo que tinha duas mulheres e com todas as duas tinha filhos. Então era aquela dificuldade para manter aqueles filhos, né… Uma vida difícil, trabalhando muito. E uma noite, ele sonhou: a alma do falecido veio lhe dar um enterro no sonho. E ele deu pouca importância daquilo. Um dia, ele estava caçando à noite, quando a alma chegou, falou pra ele:
-Estou aqui pra te dar o que você não quis. Você não foi arrancar o que eu lhe dei, porque não está acreditando.
Ele disse:
-Não, eu quero, eu quero, eu acredito demais.
E não teve medo. Aí a alma do falecido explicou pra ele aonde que era. Ele fala que a alma veio normal, conversou com ele e diz que pediu:
-Só quero que você não me assombre, não me dá medo, não me deixa ficar com medo.
-Não tem problema não, você vá lá.
-E como é que acerta o lugar?
-Você vai lá debaixo do pé de figueira, eu vou na sua frente. Chegando, arranco um galho da figueira e jogo em cima pra mostrar o lugar. Aonde tiver um galho, você pode tirar o galho da figueira e cavar ali.
Aí, diz que foi sozinho, à noite. Chegou lá, ele entrou debaixo do pé da figueira, viu o galho, aí ele puxou o galho do lugar e deu a primeira enxadãozada na terra. Ele bateu o enxadão, a alma do falecido apareceu, aí ele falou:
-Você me prometeu que não vinha me meter medo. Eu tô com medo!
Foi cavando e achou, arrancou! Ele ficou rico, criou as duas famílias. Eu conheci, conheci.”
Mitos com temas universais.
Na linha dos mitos gerais, percebemos a confluência com personagens mais universais, tais como as bruxas e lobisomens, tendo como pano de fundo o ambiente rural e as cores locais. Os contadores de histórias locais apontam as causas da sina do lobisomem: afirmam que o sétimo filho (se não houver nenhuma filha entre eles) carrega a maldição do lobisomem. Outro fator muito grave é se o compadre se casar com a comadre, ou se o padre se casar. A tensão nas comunidades era na época da quaresma, se alguma cachorra parisse, o lobisomem vinha comer os filhotinhos. Além disso, o lobisomem ataca as crianças não batizadas.
A professora Eunice Pereira da Silva (1941), dona Preta, é filha de Mané Preto e uma exímia contadora de histórias e narrou uma vivência assim: “A gente tinha uma cachorra e toda quaresma ela estava parida. E vinha um bicho e comia todos os cachorrinhos dela. Às vezes, o ninho dela ficava perto da janela e ele vinha, e essa cachorra latia, e avançava nesse bicho. Aí uma noite, o meu pai levantou e saiu correndo atrás desse bicho e desceu rumo àquele cerrado ali no Córrego da Onça e meu pai disse que era um cachorro bem rabudo, mas não conseguiu decifrar o que era. Então a gente tinha muito medo desse lobisomem por aqui.”
Essas narrativas orais são como raízes profundas da cultura do Cerrado — elas seguram a memória do povo e a sabedoria da terra. As histórias contadas de geração em geração são muito mais do que palavras jogadas ao vento — elas são os alicerces da cultura do Cerrado. Em cada causo, lenda, cantiga ou reza, pulsa o modo de ser, sentir e viver de um povo profundamente conectado à terra, à natureza e às suas raízes. As narrativas orais são o fio invisível que costura o passado ao presente, mantendo viva a identidade de comunidades inteiras.
Preservar é Ouvir, Registrar e Compartilhar
As histórias do Cerrado vivem na fala dos mais velhos, nas rodas de conversa depois da chuva, nas memórias que brotam ao cheiro de terra molhada. Preservar as vozes do cerrado é mais do que um gesto cultural — é um ato de afeto, de resistência e de responsabilidade. Ouvir com tempo, com respeito e com curiosidade. Perguntar aos avós, aos vizinhos mais velhos, aos mestres da cultura local. Muitas dessas pessoas carregam verdadeiras joias em forma de palavras — mas é preciso abrir espaço para que essas vozes possam ecoar.
Depois de ouvir, vem o registrar. Isso pode ser feito de muitas maneiras: gravando áudios ou vídeos, escrevendo em cadernos, fotografando momentos de contação de histórias, ou até mesmo criando projetos escolares ou comunitários voltados para a tradição oral. Hoje, com o celular na mão, qualquer um pode ajudar a construir um acervo de memórias vivas.
E, por fim, vem o compartilhar. Contar essas histórias para os filhos, netos, vizinhos. Levar causos e lendas para a escola, para rodas de conversa, para as redes sociais. Participar ou apoiar iniciativas culturais que valorizem o patrimônio imaterial do cerrado, como grupos de contadores de histórias, festivais regionais, feiras populares e projetos de educação patrimonial.
As vozes do cerrado são tesouros culturais — e como todo tesouro, só ganham valor quando descobertos, cuidados e repassados. Que cada leitor possa ser também um guardião dessas histórias, garantindo que elas continuem ecoando por muitas gerações. Porque onde há memória viva, há identidade, força e pertencimento.