Guardadores de Palavras: Mestres da Oralidade nas Comunidades do Cerrado

A oralidade, mais do que uma forma de comunicação, é um modo de existência para muitas comunidades tradicionais do Cerrado. É por meio dela que se compartilham histórias de origem, ensinamentos sobre a natureza, modos de rezar, curar e viver em coletividade. Em territórios aonde o livro raramente chega e a escrita não é a principal forma de registro, a fala se torna um elo vital entre passado, presente e futuro.

Os guardadores de palavras têm um papel essencial nesse processo. Eles não apenas narram causos ou entoam cantigas, mas cultivam a memória coletiva e fortalecem a identidade cultural dos seus povos. Os narradores das histórias orais trazem como pano de fundo, as cores locais.

Pessoas comuns à primeira vista, mas que carregam em suas memórias e vozes um tesouro imaterial construído ao longo de gerações. Seja em uma roda de conversa sob o pé de manga ou em uma celebração religiosa, sua presença garante que as raízes não se percam diante das transformações do mundo. São eles que mantêm viva a alma do Cerrado, em cada palavra cuidadosamente guardada e compartilhada.

Os contadores de histórias orais

Guardadores de palavras são pessoas que, através da fala, conservam e transmitem os saberes, histórias e tradições de seus povos. Não são apenas contadores de histórias, mas verdadeiros portadores de uma herança cultural que resiste ao tempo e às mudanças. O termo carrega um sentido simbólico profundo: guardar palavras é, antes de tudo, proteger mundos inteiros que vivem na linguagem oral.

Nas comunidades do Cerrado, essas figuras aparecem de diferentes formas. Podem ser anciãos que compartilham vivências e lições; contadores de causos que narram acontecimentos com humor e sabedoria; rezadores que conduzem orações e rituais, muitas vezes em línguas ancestrais; ou cantadores que embalam a vida cotidiana com cantigas tradicionais. Todos têm em comum o dom da palavra como ponte entre gerações.

A função social dos guardadores de palavras é essencial. Eles mantêm viva a memória coletiva, preservam o modo de ser de suas comunidades e fortalecem os vínculos entre as pessoas. Suas vozes carregam não só o conteúdo das histórias, mas também os sentimentos, os valores e o ritmo próprio da cultura local. São guardiões da identidade e da sabedoria popular, pilares invisíveis que sustentam a riqueza cultural do Cerrado.

Personagens reais: quem são esses Mestres?

Em meio às paisagens do Cerrado, entre as veredas e os chapadões, vivem personagens que mantêm acesa a chama da oralidade. São mestres populares, guardadores de palavras, cuja sabedoria não foi aprendida em livros, mas herdada pelo convívio, pela escuta e pela vivência comunitária.

A seguir, apresentaremos alguns exemplos entrevistados no leste de Mato Grosso do Sul, exímios contadores de histórias orais e constam na dissertação de Mestrado intitulada “Literatura oral: as narrativas populares no leste de Mato Grosso do Sul”(UFMS), com o objetivo de resgatar e registrar as narrativas orais a partir da década de 2000:

Abraão F. da Silva (1912): popularmente conhecido como Bento, de origem negra, conheceu um Brasil ainda sertão, ainda na adolescência trabalhou na roça e se aposentou como ferroviário. Sua sogra era uma benzedeira muito estimada e Bento contou muitas histórias transmitidas por seus pais. Narrou as histórias: nego d’água, nego d’água no rio Pardo, o compadre e a comadre.

Anísia Gomes F. Oliveira (1919): sua mãe era alagoana e seu pai pernambucano, migrou para Mato Grosso e se casou com um ferroviário. Mantém vivas histórias de seus pais e a cultura nordestina, inclusive, afirma que uma de suas primas fugiu para acompanhar o cunhado viúvo de Lampião. Narrou histórias sobre Lampião, Padre Cícero, lobisomem, luto pela cachorra, o burro do compadre, o menino e o poço, como quebrar o encanto do lobisomem, a cura.

Armando L. Pereira (1925): de origem holandesa, seus pais eram mineiros, migraram até se fixarem na divisa entre Mato Grosso e São Paulo. Na região de cerrado, foi dono da maior loja de secos e molhados, o que lhe permitiu relacionar-se com pessoas de todas as classes, do mais rico fazendeiro ao mais temido bandoleiro da região. Narrou as histórias: o Zé da onça, fazenda do Zeca Vida, Camisa de Couro, o fogo sobre o rio.

Eunice P. da Silva (1941): popularmente conhecida como dona Preta, seu pai era mineiro e sua mãe de origens baianas. Neta de Mané Preto, acreditamos que seu avô vivenciou a época escravagista. Seu marido era ferroviário, por isso dona Preta morou em várias cidades de Mato Grosso do Sul e interior de São Paulo, nas chamadas “turmas” da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Narrou as histórias: a cachorra na quaresma, quem era o lobisomem, a cobra maminha, o choro da criança, medo de lobisomem, o finado que virou onça, o padeiro da madrugada.

Francisco Gomes (1934): pescador muito conhecido da Colônia de Pescadores de Jupiá, Chicão nasceu na Bahia, migrou para o estado de São Paulo até se estabelecer às margens do rio Paraná. Simpático e risonho, Chicão se declara cético diante dos causos mentirosos, mesmo assim é um exímio contador de histórias orais. Narrou as histórias: o túnel do palácio de D. Pedro, o compadre caboclo d’água, caboclo d’água ou ariranha, como pescar o jaú, Saci Pererê ou morcego vampiro.

Hildebrando Lopes (1930): seu pai era imigrante português e sua mãe paulista. Aposentou-se como ferroviário, mas afirma que passou a maior parte de sua vida num barco pescando. Observador, seu Brando narrou histórias contadas por seus pais e as vivenciadas com amigos de pescaria. Narrou as histórias sobre: aparição na caçada, a onça na fazenda Serrinha, a cigarrinha, caçadas e pescarias.

Ismael Cabanha (1922): de origem paraguaia, aposentou-se como ferroviário e afirma que vivenciou a época em que o interior de Mato Grosso do Sul se reduzia a pequenas vilas localizadas na imensidão do cerrado e matas virgens, quando ainda se preservava a tradição de contar histórias para as crianças, após um dia de trabalho. Narrou as histórias: Maria Preta conta histórias, o homem na beira do rio, Saci Pererê, o turco da água e o Zé Lata, caçadas e pescarias.

Izaías Antônio de Souza (1931): Narrou as histórias sobre: enterro (o pote de ouro), a enteada e o pé de arroz, a bola de fogo, caçada na Sexta-feira da Paixão, o pé de arruda, o enterro (pote de ouro).

José Moraes (1938): residente na Colônia de Pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná, Zé Moraes é pescador profissional. Apaixonado pelas matas e pelos rios, exerceu outros ofícios em fazendas, lavouras, fábricas, até exercer finalmente a profissão de pescador. É um grande contador de histórias, com ênfase ao aspecto cômico. Narrou as histórias sobre: a onça sussuarana no Jupiazinho, jararacuçu na lagoa do Jacaré, o jaú, sucuri na lagoa do jacaré, capitão do campo.

Jurandir Queiroz (1938): de origem negra e pais baianos, afirma que seus pais migraram para São Paulo atraídos pelo garimpo, trabalhando em cafezais e depois como ferroviário. Jurandir é militar reformado e gosta de contar histórias, inclusive as que vieram na bagagem cultural de seus ancestrais. Narrou as histórias: bigamia e o enterro, o abacaxi de ouro, enterro para o aleijadinho, a anta e o caipora, Pé de Garrafa, o jaú que comia gente, nego d’água morto, bola de fogo, despedida do marido morto.

Wandwald A. de Souza (1938): sua família é composta por imigrantes europeus, negros e índios, o pai era cuiabano e a mãe sul-mato-grossense.  Wando aposentou-se como ferroviário e devido à profissão, residiu a maior parte de sua vida em outras localidades. E na juventude, sua paixão era pescar com parentes e amigos. Com sua vivência, Wando tornou-se um grande narrador de histórias.  Narrou as histórias: as ressurreições da mulher do Dominguinhos, o lobisomem perto da lagoa, o caçador e a cobra sucuri, onça e zagaia, o pulo do boi.

Essa pequena síntese retratando os entrevistados na década de 2000, traz também traços das cores locais e do contexto histórico: lembrando que o interesse militar e econômico na região.

Contexto histórico.

No início do século XX, o leste de Mato Grosso do Sul começou a viver uma transformação marcada pela presença do Exército Brasileiro e pela construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Essa região, até então marcada por longas extensões de matas e cerrado, ocupada por povos indígenas, pequenos agricultores e comunidades tradicionais, passou a ser alvo de uma ocupação estratégica e econômica.

A atuação do Exército esteve ligada principalmente à defesa das fronteiras e ao controle de uma área considerada sensível, devido à proximidade com o Paraguai e à memória ainda recente da Guerra da Tríplice Aliança. A instalação de unidades militares, como em Campo Grande e Três Lagoas, trouxe uma presença constante do poder central, reforçando a soberania nacional em uma região que, até então, vivia mais conectada com rotas comerciais do interior do que com o restante do Brasil.

Paralelamente, a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, iniciada em 1905, abriu caminhos físicos e simbólicos. A ferrovia ligava Bauru (SP) a Corumbá (MS), cortando o leste sul-mato-grossense e facilitando o escoamento da produção agropecuária, além de estimular a vinda de migrantes de diversas partes do país. O município de Três Lagoas, por exemplo, surgiu e cresceu ao redor dos trilhos, tornando-se um dos principais pontos de conexão entre o Sudeste e o Centro-Oeste.

Esse processo de ocupação, marcado por interesses militares e econômicos, teve consequências profundas para os povos originários e as populações locais. O avanço da ferrovia e da estrutura do Estado alterou paisagens, deslocou comunidades e introduziu novas dinâmicas sociais, deixando marcas que ainda hoje fazem parte da história e da identidade do Cerrado sul-mato-grossense.

Transmissão do saber: como a oralidade resiste.

A oralidade é um fio invisível que atravessa gerações nas comunidades do Cerrado. É na conversa entre avós e netos, nos cantos entoados durante as festas e nas preces murmuradas em noites de celebração que o saber tradicional se mantém vivo. Longe dos livros e dos meios formais, esse conhecimento resiste porque é partilhado com afeto e sentido.

Dentro das famílias, a transmissão acontece no cotidiano, muitas vezes sem que se perceba. Uma história contada antes de dormir, um ensinamento passado enquanto se prepara o alimento, uma cantiga que embala o trabalho na roça. São formas de ensinar e aprender que valorizam o tempo, a escuta e a convivência.

As festas populares e os rituais religiosos reforçam esse ciclo. Em celebrações como a Folia de Reis, a Festa do Divino ou os rituais indígenas de cura e passagem, a palavra ganha força coletiva. Cânticos, ladainhas, orações e narrativas sagradas atravessam os espaços e reafirmam a identidade de um povo. Esses encontros comunitários não apenas fortalecem os laços sociais, mas também servem como escolas vivas de cultura.

Desafios na atualidade.

No entanto, a oralidade enfrenta hoje desafios importantes. A urbanização acelerada, a migração dos jovens para os centros urbanos, a perda de línguas indígenas e a influência de padrões culturais externos colocam em risco muitos desses saberes. A fala dos antigos, antes tão valorizada, muitas vezes é vista como ultrapassada ou irrelevante diante das lógicas do mundo moderno.

Mesmo assim, há resistência. Em muitas comunidades, iniciativas de valorização da cultura local, projetos escolares, pesquisas acadêmicas das universidades e ações de jovens comprometidos com sua história têm contribuído para manter viva a tradição oral. A palavra, quando respeitada e ouvida, continua sendo semente. E é por meio dela que o Cerrado segue contando suas histórias, ensinando seus caminhos e afirmando sua existência.

Conclusão.

Os guardadores de palavras são mais do que narradores; são pilares que sustentam a memória, a sabedoria e a identidade das comunidades do Cerrado. Através de suas vozes, ecos do passado continuam a ressoar no presente, carregando ensinamentos, crenças, modos de viver e formas de ver o mundo que resistem mesmo diante das mudanças mais intensas.

Valorizar esses mestres da oralidade é reconhecer a importância de ouvir com atenção, respeito e humildade. Cada história contada, cada reza sussurrada, cada canto repetido carrega não apenas informação, mas sentimento, ritmo e pertencimento. A escuta ativa, nesse contexto, não é passiva; é um ato de acolhimento e também de resistência cultural.

Em tempos de ruído e pressa, é preciso reaprender a ouvir. Ouvir os mais velhos, os anônimos, os que vivem próximos da terra e do silêncio. Porque ouvir é também uma forma de preservar o Cerrado — não apenas sua fauna e flora, mas sua alma, suas palavras, seus caminhos invisíveis de saber. Que possamos, com o coração aberto, seguir ouvindo e guardando o que nos faz continuar.

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