No coração do Cerrado, os rios não são apenas cursos d’água que cortam a paisagem — eles são memória viva, caminhos de histórias e sustento de comunidades inteiras. Nascidos em nascentes cristalinas e moldados pela força do tempo, os rios do Cerrado são guardiões silenciosos de uma sabedoria antiga. São eles que conectam povos, alimentam os campos e embalam as vivências de quem cresceu à sua beira.
Estetítulo: é uma metáfora para o modo como os saberes circulam entre as comunidades ribeirinhas. É o rio que conta, através das vozes de seus moradores, as histórias que não estão nos livros, mas que vivem na fala dos mais velhos, nos causos ao redor do fogo, nas cantigas que atravessam gerações. Escutar o rio é escutar quem vive com ele, numa relação de respeito, troca e pertencimento.
A oralidade, nesse contexto, é um elo fundamental. Por meio dela, os modos de vida, os ensinamentos e até mesmo os avisos da natureza são transmitidos. Cada relato carrega não só informação, mas emoção, memória e identidade. Em tempos de avanço da urbanização e apagamento cultural, dar ouvidos a essas vozes é um ato de resistência e cuidado com o Cerrado e com os povos que o habitam.
O Cerrado e seus rios: veias da vida
O Cerrado, segundo maior bioma do Brasil, é muitas vezes chamado de “berço das águas”. É nele que nascem algumas das mais importantes bacias hidrográficas da América do Sul, como as dos rios São Francisco, Tocantins-Araguaia e Paraná. Suas veredas, córregos e nascentes formam uma rede viva que alimenta ecossistemas inteiros e sustenta milhares de comunidades humanas e não humanas.
Para as populações ribeirinhas do Cerrado, os rios são muito mais do que um recurso natural: são parte do cotidiano, da fé e da identidade. São fonte de água para beber e cozinhar, de peixe para o alimento, de caminhos para o deslocamento e de inspiração para rezas, festas e mitos. Os rios organizam o tempo das plantações, ditam o ritmo das cheias e secas, e moldam uma vida em harmonia com os ciclos da natureza.
No entanto, essas veias da vida estão cada vez mais ameaçadas. O avanço do agronegócio e o desmatamento acelerado colocam em risco as nascentes e a qualidade da água. Barragens, construídas para gerar energia ou armazenar água para grandes monoculturas, interrompem o fluxo natural dos rios e afetam diretamente as comunidades que deles dependem. A mineração, por sua vez, contamina as águas com metais pesados, destruindo o equilíbrio ecológico e colocando em perigo a saúde das pessoas.
Histórias orais: saberes que correm como o rio
Nas margens dos rios do Cerrado, o conhecimento não está apenas nos livros ou nas escolas: ele corre solto na fala dos anciãos, ecoa nas noites de lua cheia e se entrelaça nas redes das varandas. A tradição oral é o fio invisível que costura as vivências das comunidades ribeirinhas, transmitindo valores, ensinamentos e modos de vida que resistem ao tempo.
Contar histórias, por essas bandas, é mais do que entreter — é educar, preservar e fortalecer os laços entre as gerações. São os “causos“, que misturam realidade e imaginação, como o do bicho que espreita à beira do rio nas noites silenciosas, ou a lenda da mulher encantada que aparece nas águas quando a lua está cheia. Há também os contos que explicam a origem das veredas, as mudanças das estações e os avisos da natureza. Cada história guarda um pedaço da alma do lugar.
Os mais velhos, com sua fala pausada e olhar cheio de lembrança, são os verdadeiros guardiões da memória coletiva. Suas palavras carregam a sabedoria de quem viveu ouvindo e repetindo histórias à beira do fogão ou em longas caminhadas pelos caminhos d’água. Quando falam, não falam só por si, mas por todos os que vieram antes.
Recordar é reviver.
Em tempos de pressa e esquecimento, ouvir essas vozes é como se sentar à beira do rio e entender que há um mundo inteiro correndo ali — silencioso, profundo e cheio de histórias que só sobrevivem quando contadas.
Os mais velhos, com sua fala pausada e olhar cheio de lembrança, são os verdadeiros guardiões da memória coletiva. Suas palavras carregam a sabedoria de quem viveu ouvindo e repetindo histórias à beira do fogão ou em longas caminhadas pelos caminhos d’água. Quando falam, não falam só por si, mas por todos os que vieram antes.
Em tempos de pressa e esquecimento, ouvir essas vozes é como sentar à beira do rio e entender que há um mundo inteiro correndo ali — silencioso, profundo e cheio de histórias que só sobrevivem quando contadas.
Cultura, resistência e identidade
A vida às margens dos rios do Cerrado não é apenas uma questão de geografia — é um modo de ser, de sentir o tempo e de se relacionar com o mundo. Essa identidade, construída no dia a dia da pesca, nas rezas às margens do rio, nos saberes medicinais das plantas da beira, é também uma forma de resistência.
Diversas estratégias de resistência cultural e ambiental vêm sendo adotadas por essas comunidades. Algumas criam associações de moradores para fortalecer a voz coletiva e lutar por seus direitos. Outras se articulam com universidades e ONGs para registrar e divulgar suas histórias, músicas e tradições. Há também iniciativas de jovens ribeirinhos que usam a tecnologia — vídeos, podcasts e redes sociais — para mostrar que suas culturas estão vivas, atuais e merecem ser conhecidas.
Projetos de valorização e registro dessas memórias têm ganhado força. Documentários como O Rio que Nos Leva, pesquisas acadêmicas voltadas à etnografia das comunidades do Cerrado e arquivos sonoros de histórias orais são algumas das formas encontradas para eternizar essas vivências.
A cultura ribeirinha do Cerrado, longe de ser algo do passado, é presença viva, dinâmica e profundamente resistente. Valorizar essas vozes é reconhecer que, nas margens dos rios, pulsa uma força ancestral que ainda tem muito a ensinar sobre pertencimento, equilíbrio e cuidado com o mundo.
Quando o rio deixa de falar: os riscos do silêncio
Há um silêncio que dói mais do que o som da seca ou o estalo das árvores caindo. É o silêncio que se instala quando uma comunidade ribeirinha é afastada de seu território, quando a voz dos mais velhos se cala por falta de quem escute, quando as águas já não têm mais quem as leia como um livro aberto.
A oralidade, que antes fluía livre como as águas, começa a se apagar. Sem a roda de conversa no quintal, sem a beira do rio como cenário, as histórias não encontram espaço para continuar. O perigo do esquecimento cultural não está apenas na ausência de registros, mas na desconexão entre as novas gerações e as raízes que sustentam sua identidade.
Preservar os rios e quem vive com eles é garantir que essas vozes continuem ecoando. É evitar que o silêncio tome o lugar das histórias, que a pressa apague o tempo das tradições e que a paisagem se transforme num espaço sem memória.
Os causos dos rios do Cerrado central.
Valorizar a cultura ribeirinha é mais do que um ato de preservação: é uma escolha por manter vivas as vozes que carregam memórias e modos de vida únicos, que resistem mesmo diante das transformações do tempo e do território. Preservar os rios do Cerrado é garantir que essas histórias continuem correndo, como o próprio fluxo das águas, conectando passado, presente e futuro.
Localização da Vila de Pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná
A vila de pescadores de Jupiá está localizada no município de Três Lagoas, no estado de Mato Grosso do Sul, na região Sudeste do bioma Cerrado. Situada às margens do majestoso rio Paraná, essa comunidade tradicional mantém viva uma relação íntima com as águas que lhe dão sustento, identidade e direção.
Jupiá fica próxima ao ponto de encontro entre o rio Paraná e o rio Sucuriú, formando um cenário de grande beleza natural e importância estratégica para a pesca artesanal. A vila está inserida em uma área que, apesar das transformações ocorridas ao longo das últimas décadas — como a construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Jupiá — ainda guarda traços fortes da cultura ribeirinha.
De fácil acesso a partir da cidade de Três Lagoas, Jupiá permanece como um refúgio onde o tempo parece correr no ritmo das águas. Suas ruas simples, casas voltadas para o rio e o vai e vem de canoas e barcos de pesca formam um retrato vivo de uma tradição que resiste.
Mais do que um ponto no mapa, a vila de Jupiá é um território de memória, onde o saber dos pescadores se mistura às histórias do rio. Um lugar onde se pode ouvir, ainda hoje, o sussurro das águas e as vozes antigas que seguem contando — e vivendo — as histórias do Cerrado.
Palavras do pescador Chicão, da Vila dos Pescadores de Jupiá.
Segundo Chicão, pescador da Vila de Pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná, “nessa bacia do Paraná, o peixe maior que nós temos é o jaú, que já atinge os cento e vinte quilos aqui. De tamanho, dos maiores que nós temos nessa bacia é o jaú e depois o pintado. Agora, esses jaús gigantes, a gente não viu quantidades grandes não. Lá de vez em quando localiza um.
-Ah, o fulano pegou um jauzão!
A gente vai lá ver, tira foto, é grande mesmo… Antigamente dava mais peixe do que hoje. Quando o rio era natural mesmo. Hoje não, hoje tem muitas barragens, nosso rio está parecendo escada: se você pegar de Itaipu e vier subindo, aí Primavera, Jupiá, Ilha Solteira e Água Vermelha e São Simão, e vai indo, o rio é escada. Tudo represado. Você vê que o nosso rio não é mais natural, ele ficou sendo artificial.”
Para concluir, a seguir, vamos conhecer um causo narrado por Jurandir Queiroz (1938), militar reformado, de origens negras, seu pai trabalhou em cafezais e depois trabalhou para a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, de maneira que morou em várias localidades e era exímio contador de histórias.
O Jaú que Comia Gente.
“Aqui na região se fala muito de aparição do Nego D’água, mas eu que sou nascido por aqui às margens do rio Paraná nunca vi. Na minha época, o que existiu era o Jaú que Comia Gente. Jaú é um peixe, enorme. Nós temos um causo aqui, do genro do coronel João, dono do Porto. A sua filha Mariinha mulata perdeu o marido quando atravessava o braço do rio Paraná. Sentindo falta da canoa, ele nadou e foi buscar a canoa na outra margem, o rio estreito… Chegando na outra margem, ele desapareceu porque um jaú gigante tinha devorado ele. O coronel João colocou a peonada toda pra fazer uma varredura no fundo do rio, mas não achou o corpo do genro. Isso aconteceu na década de 1920, o corpo desapareceu, foi devorado pelo jaú. O jaú que comia gente tinha uns cento e oitenta quilos. Uma vez um japonês conseguiu trazer um jaú gigante num caminhão, deitado de fora a fora do caminhão, gigante, mais que um boi, a cara mais feia do mundo e os cabelos debaixo da asa. Esse eu vi, o jaú que comia gente.”
Que este texto seja um convite a ouvir com atenção. A proteger não só as águas que vemos, mas também as histórias que elas carregam. Porque, no fundo, quando cuidamos dos rios, estamos cuidando de nós mesmos.