encantosdocerrado.com https://encantosdocerrado.com Sat, 31 May 2025 04:51:54 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.1 https://encantosdocerrado.com/wp-content/uploads/2025/05/cropped-EC-32x32.png encantosdocerrado.com https://encantosdocerrado.com 32 32 244143307 Veredas Encantadas: A Importância Cultural das Águas no Cerrado Central https://encantosdocerrado.com/2025/05/31/veredas-encantadas-a-importancia-cultural-das-aguas-no-cerrado-central/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/31/veredas-encantadas-a-importancia-cultural-das-aguas-no-cerrado-central/#respond Sat, 31 May 2025 04:48:26 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=131 Quando caminhamos pelos caminhos do Cerrado Central, é impossível não se encantar com as veredas — verdadeiros oásis em meio à paisagem seca e dourada. Esses corredores verdes, margeados por buritis majestosos, são muito mais do que simples cenários de beleza natural. As veredas são símbolos de vida, resistência e cultura, guardiãs das águas que alimentam rios e sustentam a rica biodiversidade deste bioma.

Mas afinal, o que são as veredas?

São áreas úmidas, geralmente localizadas em terrenos mais baixos, onde a presença constante de água dá origem a nascentes e pequenos cursos d’água. O solo encharcado e a vegetação peculiar — com destaque para os buritis — criam um ambiente único, que serve de abrigo e sustento para inúmeras espécies de fauna e flora.

Mais do que seu papel ecológico, as veredas carregam um profundo significado cultural para as comunidades do Cerrado Central. As águas que brotam desses lugares são fonte de vida, inspiração para lendas, cantos e tradições, além de serem fundamentais para a manutenção dos modos de vida tradicionais. Proteger esses espaços é, portanto, preservar não apenas a natureza, mas também a memória, os saberes e a identidade de um povo.

Destaque às veredas brasileiras.

Neste artigo, vamos explorar o universo das “Veredas Encantadas”, refletindo sobre a importância cultural das águas no Cerrado Central. Uma jornada que une natureza, cultura e resistência em defesa de um dos patrimônios mais valiosos do Brasil.

As veredas são joias naturais espalhadas por todo o Cerrado brasileiro, formando verdadeiros oásis de biodiversidade. No norte de Minas Gerais, destaca-se a Vereda do Peruaçu, cercada por cavernas e rica em espécies endêmicas.

No Distrito Federal, a Vereda da Chapada Imperial é exemplo de conservação e educação ambiental. Na região da Chapada dos Veadeiros (GO), as veredas próximas ao Rio Preto encantam pela beleza cênica e pela diversidade de fauna e flora.

No oeste da Bahia, as veredas do Parque Nacional Grande Sertão Veredas são símbolos de resistência, inspiração literária e abrigo para espécies ameaçadas. Também são notáveis as veredas do Parque Nacional da Serra das Confusões, no Piauí, e da Serra do Cipó, em Minas Gerais, ambas essenciais para os recursos hídricos da região. Cada uma dessas veredas guarda não só riquezas naturais, mas também histórias, tradições e conhecimentos ancestrais que fazem parte da identidade do Cerrado. Elas são fundamentais para a manutenção dos aquíferos, da fauna e da cultura local. Preservá-las é garantir vida para todo o bioma.

Corredores das águas na Cultura Popular

As veredas não são apenas espaços de abundância natural — elas também ocupam um lugar de destaque no imaginário, nas tradições e na cultura popular do Cerrado. Esses corredores de água e vida inspiraram gerações de artistas, escritores, músicos e moradores, que veem nas veredas muito mais do que simples paisagens: veem portais para o sagrado, o misterioso e o encantado.

Na literatura brasileira, poucos descreveram tão profundamente a alma das veredas quanto João Guimarães Rosa. Em sua obra-prima “Grande Sertão: Veredas”, ele transforma esses espaços em cenários quase místicos, onde se desenrolam dramas humanos, dilemas existenciais e encontros com o sobrenatural. No sertão rosiano, as veredas são refúgio, travessia e também metáfora dos caminhos da vida, com suas curvas, incertezas e descobertas.

O simbolismo das águas nas veredas carrega significados que vão além da sobrevivência física. Para muitos povos tradicionais do Cerrado — quilombolas, ribeirinhos e comunidades rurais —, a água das veredas é fonte de cura, proteção e conexão espiritual. Ela alimenta não só o corpo, mas também a alma, sendo elemento central em rezas, benzimentos, oferendas e rituais que atravessam gerações.

Festas Populares e os Saberes tradicionais.

Além disso, as veredas estão profundamente ligadas às festas populares e aos saberes tradicionais. É comum que romarias, folias de reis, festejos de santos e celebrações de colheita estejam associadas à proximidade das águas. Nesses encontros, há cantorias, danças, partilha de alimentos e trocas de saberes ancestrais que fortalecem o sentimento de pertencimento e de cuidado com o território.

As lendas que circulam pelas comunidades também reforçam esse caráter encantado das veredas. Fala-se de seres protetores, encantados que habitam as águas, de assombrações, de luzes misteriosas que surgem nas noites silenciosas. Tudo isso compõe um universo simbólico que reafirma o respeito e a reverência que as pessoas do Cerrado nutrem por esses espaços.

Assim, as veredas são muito mais do que paisagens — são guardiãs de histórias, memórias e espiritualidades que fazem pulsar a cultura viva do Cerrado Central.

A Importância das Águas no Cerrado Central

O Cerrado é conhecido como a “Caixa d’água do Brasil”, e não é por acaso. As águas que brotam de suas veredas, nascentes e córregos são responsáveis por abastecer algumas das maiores bacias hidrográficas da América do Sul, como as bacias do São Francisco, Tocantins-Araguaia, Paraná e Parnaíba. Essas águas são fundamentais não só para o equilíbrio ambiental, mas também para a sobrevivência de milhões de pessoas dentro e fora do bioma.

As veredas e o ciclo hídrico.

Do ponto de vista ecológico, as veredas cumprem um papel vital. Elas atuam como esponjas naturais, armazenando água nos períodos de chuva e liberando-a lentamente durante a seca. Esse mecanismo alimenta aquíferos profundos, mantém os cursos d’água perenes e sustenta a biodiversidade local. Sem as veredas, o Cerrado perderia sua capacidade de regular o ciclo hídrico, impactando diretamente a fauna, a flora e até mesmo os regimes de chuvas em outras regiões do Brasil.

Nossa fauna e o nosso meio ambiente.

Mas as águas do Cerrado Central não são importantes apenas para o meio ambiente — elas são essenciais para a vida social e econômica das comunidades locais. Agricultores familiares, pequenos pecuaristas e povos tradicionais dependem diretamente dessas águas para a produção de alimentos, para a criação de animais e para práticas sustentáveis que mantêm viva a economia local. As veredas oferecem água limpa para irrigação, para o consumo humano e animal, além de serem fundamentais para a pesca artesanal e para atividades extrativistas.

O impacto das águas na cultura local é profundo e multifacetado. Elas moldam modos de vida, tradições e saberes. Muitos alimentos típicos do Cerrado surgem justamente das espécies que se desenvolvem nas áreas úmidas, como frutos, ervas medicinais e plantas comestíveis. A medicina tradicional também se apoia no uso de plantas que crescem nas margens das veredas, usadas em chás, infusões e rituais de cura. No artesanato, materiais como talos de buriti e fibras vegetais extraídas de áreas úmidas são transformados em cestos, esteiras e objetos que carregam história e identidade.

Portanto, preservar as águas do Cerrado não é apenas uma questão ambiental. É também proteger os modos de vida, a economia e a cultura de quem vive em harmonia com esse bioma há gerações. Cuidar das veredas é garantir que o Cerrado continue sendo fonte de vida, de sustento e de saberes para o presente e para o futuro.

Desafios e Ameaças às Veredas

Apesar de sua importância vital para o Cerrado e para todo o país, as veredas enfrentam hoje uma série de ameaças que colocam em risco tanto seu equilíbrio ecológico quanto a riqueza cultural que elas abrigam. O avanço desenfreado do desmatamento, das queimadas e de atividades econômicas predatórias tem provocado um cenário alarmante de degradação desses ambientes frágeis e essenciais.

Desmatamento, Monocultura e Queimadas.

Um dos principais vilões é o desmatamento associado à expansão da agropecuária e da monocultura. A retirada da vegetação nativa compromete diretamente a capacidade das veredas de reter e filtrar a água, além de expor o solo à erosão e ao assoreamento dos cursos d’água. Somam-se a isso as queimadas — muitas vezes criminosas ou resultado de manejo inadequado — que destroem não só a flora e a fauna, mas também todo o equilíbrio microclimático que as veredas ajudam a manter.

Números recordes de queimadas

Segundo dados do Monitor do Fogo do MapBiomas, mais de 30,8 milhões de hectares foram queimados entre janeiro e dezembro de 2024 — uma área superior ao território da Itália. Esse número representa um aumento de 79% em relação a 2023, sendo o maior registro desde o início do monitoramento em 2019.

As consequências dessas queimadas são vastas, incluindo a perda de biodiversidade, emissão de gases de efeito estufa, degradação de solos e impactos diretos na saúde e na qualidade de vida das populações locais. A situação evidencia a necessidade urgente de políticas públicas eficazes, fiscalização rigorosa e ações coordenadas para prevenir e combater os incêndios florestais no país.

Rebaixamento dos lençóis freáticos.

Outro desafio crescente é o rebaixamento dos lençóis freáticos, provocado pela extração excessiva de água para irrigação, mineração e outros usos industriais. Esse desequilíbrio hídrico afeta diretamente as nascentes, que começam a secar, alterando profundamente o ciclo das águas no Cerrado. Além disso, as mudanças climáticas intensificam esses impactos, trazendo períodos de seca mais longos e chuvas mais irregulares, o que agrava ainda mais a vulnerabilidade das veredas.

A proteção requer ações integradas.

As consequências desse processo de degradação vão além do meio ambiente — elas atingem também os saberes tradicionais e os modos de vida das populações que dependem das veredas. À medida que os territórios são destruídos ou comprometidos, práticas culturais, conhecimentos sobre plantas medicinais, técnicas de manejo sustentável e expressões simbólicas começam a desaparecer. Trata-se de uma perda dupla: ambiental e cultural.

Proteger as veredas, portanto, é enfrentar esses desafios de forma integrada. É entender que a luta pela preservação não diz respeito apenas à natureza, mas também à proteção de uma herança cultural construída por gerações que aprenderam a viver em harmonia com as águas encantadas do Cerrado.

Conservação e Valorização Cultural das Veredas

Diante dos desafios que ameaçam as veredas, surgem também movimentos de resistência, cuidado e valorização que mostram que é possível trilhar caminhos de conservação aliados à preservação cultural. Diversas iniciativas vêm sendo desenvolvidas por comunidades tradicionais, organizações não governamentais, pesquisadores e órgãos públicos para proteger esses ambientes sagrados e fundamentais para o Cerrado.

A importância da preservação ambiental e cultural.

As ações de preservação ambiental e cultural incluem desde projetos de recuperação de áreas degradadas até programas de educação ambiental que fortalecem o sentimento de pertencimento das populações locais. Comunidades quilombolas, indígenas e rurais têm sido protagonistas na defesa das veredas, resgatando práticas ancestrais de manejo sustentável e transmitindo saberes sobre o uso responsável das águas e da biodiversidade.

ONGs e coletivos ambientais desenvolvem projetos que combinam ciência, cultura e participação social. São iniciativas que mapeiam nascentes, restauram matas ciliares, criam viveiros de espécies nativas e promovem oficinas sobre saberes tradicionais. Além disso, algumas políticas públicas têm buscado proteger legalmente as veredas, por meio da criação de unidades de conservação, reconhecimento de territórios tradicionais e incentivo à agroecologia.

Turismo ecológico e ambiental nas regiões de Cerrado.

O turismo ecológico e cultural surge como uma poderosa ferramenta para a conservação das veredas encantadas. Quando bem planejado e conduzido de forma comunitária, esse tipo de turismo não só gera renda para as populações locais, como também fortalece o cuidado com o meio ambiente e valoriza a cultura regional. Trilhas interpretativas, banhos de rio, vivências culturais, oficinas de artesanato e gastronomia típica são algumas das experiências que permitem aos visitantes conhecer e se conectar com a magia das veredas.

Conclusão

As veredas, com suas águas cristalinas cercadas por buritis, não são apenas refúgios naturais no coração do Cerrado — são verdadeiros espaços encantados, onde vida, cultura e espiritualidade se entrelaçam de forma inseparável. Elas sustentam não só a biodiversidade, mas também os saberes, as histórias e as tradições das comunidades que, há gerações, aprendem a viver em sintonia com seus ciclos e seus mistérios.

Diante dos desafios que ameaçam esses territórios, é urgente refletirmos sobre o nosso papel na proteção das águas e na valorização dos conhecimentos tradicionais que brotam junto com elas. Defender as veredas é defender não apenas o equilíbrio ecológico, mas também a memória, a cultura e o futuro do Cerrado.

Grande Sertão: Veredas

A obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é um dos maiores marcos da literatura brasileira e retrata com profundidade a complexidade do sertão brasileiro. O romance utiliza as veredas como cenário e símbologia, desafio e transformação. Através da linguagem poética, a obra resgata saberes, lendas e a cultura popular. E nos inspira com a valorização das veredas como patrimônio natural e cultural, como caminhos de vida, resistência e encantamentos.

Cuidar das veredas é, portanto, um ato de amor, resistência e futuro. É reconhecer que nesses espaços pulsa não apenas a água que sustenta a vida, mas também as histórias, os saberes e a alma do Cerrado Central. Cada ação de proteção é um passo na direção de um mundo mais equilibrado, justo e em harmonia com a natureza.

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Nascentes Sagradas: Espiritualidade e Devoção Popular Ligadas às Águas do Cerrado https://encantosdocerrado.com/2025/05/31/nascentes-sagradas-espiritualidade-e-devocao-popular-ligadas-as-aguas-do-cerrado/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/31/nascentes-sagradas-espiritualidade-e-devocao-popular-ligadas-as-aguas-do-cerrado/#respond Sat, 31 May 2025 03:56:38 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=128 A conexão entre água, espiritualidade e cultura no Cerrado.

No coração do Brasil, o Cerrado se revela não apenas como um bioma de rica biodiversidade, mas também como um território profundamente marcado pela conexão entre a natureza e a espiritualidade. Entre veredas, chapadas e campos, brotam nascentes que alimentam os maiores rios da América do Sul, dando ao Cerrado o título de berço das águas. Mais do que fontes de vida para o meio ambiente, essas águas carregam significados que transcendem o aspecto físico e ecológico.

O Cerrado como “berço das águas” e território de fé, devoção e tradição.

Para as populações tradicionais, comunidades rurais e povos que habitam essa região, as nascentes são lugares de fé, devoção e encontro com o sagrado. Elas não são vistas apenas como recursos naturais, mas como espaços de espiritualidade, de cura e de fortalecimento dos laços culturais. É nas margens dessas águas cristalinas que acontecem rituais, rezas, promessas, banhos de proteção e celebrações que mantêm viva a tradição e a identidade de quem vive em sintonia com essa terra.

Importância das nascentes não só como recurso natural, mas como espaços sagrados para comunidades locais.

Ao compreender as nascentes do Cerrado como símbolos de resistência espiritual e cultural, percebe-se que sua preservação vai muito além da questão ambiental. Ela representa também o cuidado com uma memória coletiva, um patrimônio imaterial que une gerações em torno da reverência pela água, pela vida e pelos saberes ancestrais que permeiam o Cerrado.

Cerrado, Berço das Águas e da Espiritualidade

O Cerrado ocupa uma extensa área do território brasileiro, abrangendo diversos estados e sendo considerado um dos biomas mais ricos em biodiversidade do planeta. É conhecido como berço das águas porque abriga as nascentes que formam as principais bacias hidrográficas da América do Sul, como as dos rios São Francisco, Tocantins-Araguaia, Paraná-Paraguai e Amazonas. Suas veredas, olhos-d’água e córregos são fundamentais não apenas para o equilíbrio ambiental, mas também para a sustentação da vida humana, animal e vegetal em uma imensa região do continente.

Breve contextualização geográfica e ambiental das nascentes do Cerrado.

O Cerrado brasileiro é conhecido por sua importância hídrica, sendo responsável por alimentar as principais bacias hidrográficas do país e de grande parte da América do Sul. Graças às suas características geográficas e à presença de inúmeros aquíferos, veredas e nascentes, esse bioma é considerado uma verdadeira caixa d’água do continente. Suas águas dão origem a rios que percorrem milhares de quilômetros, cruzando fronteiras e abastecendo ecossistemas diversos, além de milhões de pessoas.

Entre as principais bacias hidrográficas que têm origem no Cerrado, destaca-se a Bacia do Rio São Francisco. Conhecido como o rio da integração nacional, o São Francisco nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais, e percorre vários estados do semiárido nordestino, sendo vital para abastecimento, irrigação, geração de energia e cultura das populações ribeirinhas.

Bacia hidrográfica do Tocantis-Araguaia.

Outra bacia de extrema relevância é a do Tocantins-Araguaia, que nasce no centro do país e se estende até o norte, desaguando no Oceano Atlântico. Essa bacia é fundamental para a biodiversidade da região e para a geração de energia, com destaque para a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, uma das maiores do Brasil.

Bacia do rio Paraná.

O Cerrado também abriga parte significativa da Bacia do Paraná, que junto com seus afluentes, como o Rio Paranaíba e o Rio Grande, forma um dos sistemas fluviais mais importantes da América do Sul. Essa bacia é essencial para a produção agrícola, geração de energia elétrica e abastecimento urbano, especialmente nas regiões Sudeste e Sul do Brasil.

Bacia do rio Paraguai e a divisa com o Pantanal.

Além disso, o bioma contribui para a Bacia do Paraguai, que se conecta ao Pantanal, sustentando o equilíbrio hídrico de um dos maiores complexos de áreas úmidas do mundo. As águas provenientes do Cerrado são fundamentais para manter o ciclo de cheia e seca que garante a biodiversidade pantaneira.

Bacia Amazônica.

Por fim, parte das nascentes do Cerrado também alimenta a Bacia Amazônica, especialmente através dos rios que descem das regiões de chapadas e serras do centro-oeste em direção ao norte do país. Esse aporte hídrico é essencial para complementar o regime das águas da maior floresta tropical do planeta.

Diante desse cenário, fica evidente que o Cerrado desempenha um papel estratégico na manutenção dos recursos hídricos não apenas do Brasil, mas de toda a América do Sul. Proteger suas nascentes, veredas e rios é garantir a continuidade da vida em diversas regiões que dependem direta ou indiretamente dessas águas.

Para as comunidades tradicionais que vivem nesse bioma, a água não é apenas um recurso natural. Ela carrega um significado que vai além da matéria. As nascentes são vistas como entidades vivas, portadoras de energia, sabedoria e força espiritual. São locais onde se busca equilíbrio, saúde e proteção. Muitas famílias mantêm o costume de visitar determinadas fontes para realizar benzimentos, banhos de descarrego, oferendas ou simplesmente agradecer pelas bênçãos recebidas.

Relação simbólica entre as águas e o sagrado na cultura popular do Cerrado.

Na cultura popular do Cerrado, a água possui uma dimensão simbólica muito forte. Ela representa pureza, renascimento, conexão com o divino e com as forças da natureza. Não é raro encontrar relatos de que as águas de certas nascentes têm poderes de cura, que determinadas veredas são guardadas por encantados ou que determinados olhos-d’água são morada de entidades espirituais. Essa relação sagrada com as águas reforça o sentimento de pertencimento das comunidades ao território, além de fortalecer práticas culturais, religiosas e de preservação ambiental.

No Cerrado, as nascentes não são apenas pontos de onde brota a vida em forma de água, mas também verdadeiros espaços de devoção popular. Muitas comunidades enxergam esses lugares como portais sagrados, onde a força da natureza se une ao divino, criando um ambiente propício para a fé, a espiritualidade e os rituais ancestrais.

É comum que nascentes sejam escolhidas como destino de peregrinações, principalmente em datas festivas ou em momentos de agradecimento e busca por graças. Pessoas caminham longas distâncias, muitas vezes em silêncio, em oração ou entoando cantos tradicionais, levando consigo promessas, intenções e pedidos. Nessas águas consideradas puras e abençoadas, realizam-se banhos de cura, rituais de limpeza espiritual e oferendas simbólicas.

O cemiterinho do soldado.

Às margens dessas fontes de água, não é raro encontrar capelinhas erguidas por moradores locais, cruzes fincadas no chão, imagens de santos protegidos por pequenas coberturas, velas acesas e objetos votivos como fitas, terços e pedaços de tecido. Esses elementos traduzem o agradecimento, a fé e a devoção de quem acredita no poder das águas como mediadoras entre o humano e o sagrado.

Um dos locais que podemos citar é o Cemiterinho do Soldado, localizado no leste de Mato Grosso do Sul, onde a população local trazia oferendas na década de 1960 para pedir chuva nas épocas de seca, além de acreditar no poder de cura da água que minava no local. Acredita-se que um soldado, fugindo da guerra, morreu ali com fome, sede e queimado.

A relação das comunidades do Cerrado com as nascentes é, portanto, muito mais do que uma prática religiosa. Ela representa um elo afetivo e simbólico entre as pessoas, a terra e o sagrado, fortalecendo os laços culturais e a identidade de quem vive em harmonia com esse bioma tão especial.

Rituais de cura, benzimentos e banhos nas nascentes.

Nas comunidades do Cerrado, as águas que brotam das nascentes são muito mais do que recursos naturais — são elementos carregados de força, cura e espiritualidade. Desde tempos ancestrais, os saberes populares associam essas águas à capacidade de restaurar o equilíbrio físico, emocional e espiritual das pessoas. A tradição oral transmite histórias de fontes consideradas milagrosas, cujas águas são buscadas por aqueles que necessitam de alívio para males do corpo e da alma.

Uso de plantas medicinais e águas sagradas em práticas de saúde espiritual.

Os rituais de cura realizados nesses locais fazem parte do cotidiano de muitos grupos, especialmente nas comunidades tradicionais. Benzimentos, orações, defumações e banhos com ervas são práticas que combinam a força da água com o poder das plantas medicinais do Cerrado. As rezadeiras, os curadores e os mestres da medicina tradicional conduzem esses rituais, guiados por conhecimentos passados de geração em geração.

A escolha das ervas não é aleatória. Cada planta tem um significado e uma função específica. Folhas de arnica, alecrim do campo, hortelã-do-cerrado, entre outras, são colhidas com respeito, quase sempre após uma prece, e combinadas à água corrente das nascentes para preparar banhos de descarrego, chás ou lavagens que promovem limpeza energética e cura espiritual.

A conexão entre rezadeiras, curadores e as águas consideradas milagrosas.

Para muitas pessoas, a água das nascentes do Cerrado possui uma energia vital única. Ela é utilizada em momentos de oração, para molhar o corpo, fazer cruzes na testa, no peito e nas mãos, simbolizando proteção e renovação. Há quem leve garrafas cheias dessas águas para guardar em casa, acreditando que sua força se mantém viva, pronta para ser usada em momentos de necessidade.

Essa conexão entre as águas e os saberes espirituais reforça o entendimento de que o Cerrado não é apenas um bioma, mas um território sagrado, onde natureza, fé e cultura se entrelaçam profundamente. Proteger as nascentes significa, portanto, não apenas conservar a biodiversidade, mas também garantir que esses saberes, práticas e tradições continuem vivos, pulsando junto com a própria essência desse território.

As Águas nos Mitos e Narrativas Populares com temáticas negras e indígenas.

As águas do Cerrado não são apenas fonte de vida, mas também de mistérios, encantamentos e narrativas que atravessam gerações. Nos contos populares, nascentes, veredas e rios são moradas de seres encantados que protegem, orientam e, por vezes, testam aqueles que se aproximam. Essas histórias fazem parte do imaginário coletivo e ajudam a construir uma relação de profundo respeito e reverência pelas águas.

Lendas e histórias de encantados, serpentes d’água, mães d’água e entidades guardiãs das fontes.

Entre as lendas mais recorrentes estão as das mães d’água, entidades femininas que vivem nas profundezas das fontes. Elas são descritas como figuras belas, de longos cabelos, que aparecem para quem se aproxima com pureza de coração ou para advertir aqueles que desrespeitam o lugar. Diz-se que essas guardiãs podem tanto conceder bênçãos quanto provocar sumiços e confusões a quem ameaça a harmonia do ambiente.

Outra presença constante nos causos do Cerrado são as serpentes d’água, muitas vezes gigantes, que vivem enroladas nas nascentes, protegendo os veios de água. Conta-se que, se essas serpentes forem perturbadas, podem desencadear grandes secas, enchentes ou desmoronamentos. Essa narrativa funciona como um alerta simbólico para a preservação e o cuidado com os recursos hídricos.

Causos sobre desaparecimentos, milagres e fenômenos nas proximidades das nascentes.

Não faltam também histórias de aparecimentos misteriosos, luzes que flutuam sobre os brejos, sons inexplicáveis vindo das matas ou relatos de pessoas que se perderam ao tentar desrespeitar espaços considerados sagrados. Em contrapartida, há inúmeros causos de milagres: pessoas que foram curadas após beberem água de determinadas fontes, animais salvos após banhos em veredas ou agricultores que encontraram solução para tempos de seca graças a uma nascente desconhecida revelada em sonho.

Como essas narrativas reforçam o respeito e a sacralidade dos recursos hídricos.

Essas narrativas populares cumprem um papel essencial na preservação das águas do Cerrado. Elas não apenas alimentam o imaginário cultural, mas também reforçam valores comunitários de respeito, cuidado e responsabilidade com os bens naturais. Ao transmitir esses causos, as comunidades mantêm viva a consciência de que as águas não são apenas um recurso, mas parte de um sistema sagrado que sustenta tanto a vida material quanto a espiritual desse território.

Os mitos da água na linhagem europeia.

Na cultura europeia, os mitos relacionados à água sempre ocuparam um lugar central no imaginário popular, associando fontes, rios e lagos a mistérios, curas e transformações. Um dos mais famosos é o mito da Fonte da Juventude, uma lendária nascente cujas águas teriam o poder de rejuvenescer quem delas bebesse ou se banhasse. Essa crença aparece em várias tradições, especialmente na Idade Média, quando exploradores e viajantes acreditavam que poderiam encontrar esse lugar mágico em terras distantes.

Na mitologia celta, poços e fontes eram considerados portais sagrados, conectando o mundo dos vivos ao espiritual. As ninfas das águas, presentes na tradição greco-romana, também simbolizavam beleza, sedução e poderes curativos. Na Península Ibérica, persistem lendas sobre fontes milagrosas associadas a aparições de santos ou a pactos antigos com seres encantados.

O simbolismo da água como elemento de purificação e renovação atravessa séculos e permanece presente em rituais, crenças e até na arquitetura, como nas fontes ornamentais das cidades europeias. A busca pela Fonte da Juventude representa, no fundo, o desejo humano de eternidade, saúde e transformação. Essa simbologia reflete um entendimento ancestral da água não apenas como elemento físico, mas como portadora de vida e mistérios sagrados. Mesmo hoje, muitas dessas fontes são procuradas por turistas e devotos que acreditam em seus poderes terapêuticos.

Resistência e Proteção: Movimentos Culturais e Comunitários

Em meio aos desafios ambientais que ameaçam o Cerrado, surgem movimentos culturais e comunitários que se tornam verdadeiros guardiões das nascentes e da cultura local. Essas iniciativas, conduzidas por moradores, mestres da cultura, rezadeiras, curadores e defensores ambientais, articulam a proteção da natureza com a valorização dos saberes tradicionais e da espiritualidade. Mais do que uma luta ambiental, trata-se de um movimento de resistência cultural que entende que proteger as águas é também proteger a própria identidade do Cerrado.

Iniciativas de preservação cultural e ambiental envolvendo as nascentes.

Lideranças comunitárias desempenham um papel fundamental nesse processo. São elas que organizam mutirões de limpeza das nascentes, realizam plantios de espécies nativas para recuperação das veredas e promovem encontros de transmissão de saberes, onde jovens aprendem desde cedo a importância da preservação. As práticas de cuidado espiritual, como benzimentos coletivos, rezas e cerimônias nas margens das fontes, caminham lado a lado com ações concretas de conservação ambiental.

O papel de lideranças comunitárias, mestres da cultura e defensores ambientais.

Na Vila de Pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná e na divisa entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, pescadores são exímios contadores de histórias (das narrativas trazidas de outras regiões na infância, aos mitos atuais como o Nego D’Água).

Os temas bastante diversificados, tratam dos mitos da água e das matas, trazem o humor através das histórias de pescarias e caçadas, além de desenhar o cenário com as cores locais – num vasto repertório da memória coletiva entre os ribeirinhos.

Integração entre saberes tradicionais, espiritualidade e ações sustentáveis.

Essa integração entre tradição e sustentabilidade se reflete em projetos de educação ambiental, festivais culturais, feiras de saberes e encontros de povos do Cerrado. Nessas ocasiões, o conhecimento ancestral sobre as plantas, as águas e os ciclos da natureza dialogam com práticas contemporâneas de gestão ambiental, formando redes de apoio e proteção. O Cerrado se mantém vivo não só pela força da natureza, mas pela resistência de quem entende que cultura, espiritualidade e meio ambiente são partes inseparáveis de um mesmo todo.

As comunidades tradicionais nos mostram, todos os dias, que há outras formas de se relacionar com a natureza, baseadas no respeito, na reciprocidade e na reverência. Seus conhecimentos, muitas vezes invisíveis para o mundo urbano, são verdadeiros patrimônios culturais, capazes de ensinar caminhos mais sustentáveis e conscientes para toda a sociedade.

A água, no Cerrado, não é apenas líquida — ela é memória viva, é fé que corre entre as pedras, é cultura que brota junto com a vegetação das veredas. Que possamos olhar para esses territórios com mais sensibilidade, valorizando quem os cuida e reconhecendo que preservar as nascentes é, também, manter viva a essência de um povo e de uma terra cheia de encantos.

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Saberes e Sabores do Cerrado: Tradições que Resistem ao Tempo https://encantosdocerrado.com/2025/05/30/saberes-e-sabores-do-cerrado-tradicoes-que-resistem-ao-tempo/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/30/saberes-e-sabores-do-cerrado-tradicoes-que-resistem-ao-tempo/#respond Sat, 31 May 2025 02:32:27 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=123 O Cerrado brasileiro é muito mais do que um bioma de grande biodiversidade. Ele é também um território rico em cultura, histórias e tradições que atravessam gerações. As comunidades que vivem nessa imensidão de paisagens, composta por campos, veredas e matas, carregam consigo um vasto patrimônio imaterial que se reflete nos seus saberes e sabores.

Os saberes são os conhecimentos acumulados ao longo dos anos, transmitidos de forma oral ou por meio da prática. Estão presentes nos ofícios tradicionais, nas técnicas de cultivo, nos cuidados com a saúde por meio das plantas medicinais, nas crenças e nos rituais que ajudam a compreender e a respeitar a natureza. Já os sabores são o reflexo desse saber no prato. Eles se manifestam na culinária rica em ingredientes nativos, como o pequi, o baru, a cagaita e o buriti, que dão origem a pratos cheios de identidade e conexão com o território.

Preservar esses saberes e sabores é mais do que valorizar uma cultura; é também um ato de resistência. As comunidades tradicionais do Cerrado enfrentam desafios constantes, como a perda de seus territórios, o avanço do desmatamento e as ameaças à sua forma de viver. Mesmo assim, seguem firmes, mantendo viva uma cultura que dialoga diretamente com a terra, a biodiversidade e os ciclos da natureza.

Ao conhecer essas tradições, somos convidados a refletir sobre a importância de apoiar e valorizar os povos que mantêm acesa a chama da cultura popular do Cerrado. Mais do que histórias e receitas, eles nos oferecem uma visão de mundo que prioriza o equilíbrio, o cuidado e o respeito pela vida em todas as suas formas.

O Cerrado E os Saberes Ancestrais

O Cerrado é conhecido como o segundo maior bioma do Brasil e considerado a savana mais biodiversa do planeta. Suas paisagens misturam campos abertos, matas, veredas e chapadas, formando um mosaico natural que abriga uma imensa variedade de plantas, animais e, sobretudo, culturas humanas. Mais do que um território ecológico, o Cerrado é também um espaço cultural, onde populações desenvolvem, há séculos, modos de vida profundamente conectados com a terra e os ciclos da natureza.

Ao longo de sua história, o Cerrado se tornou o lar de diferentes grupos que construíram uma relação de equilíbrio com o meio ambiente. São povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, ferroviários e pequenos agricultores. Esses grupos são os verdadeiros guardiões dos saberes ancestrais, mantendo viva uma série de práticas, técnicas e conhecimentos que dialogam diretamente com a biodiversidade local.

O berço da diversidade.

Cada comunidade carrega um conjunto único de saberes, que vai desde o uso de plantas medicinais, o manejo sustentável dos recursos naturais, a produção artesanal, até a culinária baseada nos frutos, raízes e sementes do Cerrado. Esses conhecimentos são transmitidos oralmente, de geração em geração, por meio de histórias, cantos, rituais, ensinamentos cotidianos e pela convivência comunitária.

Essa transmissão oral é fundamental para garantir a continuidade das práticas culturais e da relação de respeito com a natureza. Ela permite que os mais jovens aprendam não apenas técnicas, mas também valores, como a importância da coletividade, da solidariedade e do cuidado com o território. Assim, o Cerrado se mantém não só como um berço de biodiversidade, mas também como um verdadeiro celeiro de saberes, onde cultura e natureza caminham juntas há séculos.

Sabores do Cerrado: Gastronomia com Identidade

A culinária do Cerrado é muito mais do que uma simples combinação de ingredientes. Ela carrega consigo histórias, memórias e uma forte ligação com o território. Cada fruto, semente e raiz encontrado nessa imensa região traduz a riqueza de um bioma que se reflete na mesa das comunidades locais, criando uma gastronomia única, cheia de identidade e significado.

As delícias nativas locais.

Entre os ingredientes mais simbólicos estão o pequi, com seu aroma inconfundível que domina muitos pratos tradicionais, e o baru, uma castanha nobre, rica em sabor e nutrientes. A cagaita, com seu sabor ácido e refrescante, o buriti, conhecido como o fruto da vida, e o jatobá, com sua polpa doce e nutritiva, também ocupam lugar de destaque nas receitas locais. Além deles, o araticum, a mangaba e tantos outros frutos nativos fazem parte do repertório alimentar que define a culinária do Cerrado.

Esses ingredientes dão origem a pratos que são verdadeiros símbolos culturais. O arroz com pequi, por exemplo, é mais que uma refeição: é um ritual que reúne famílias e desperta lembranças de infância. O biscoito de baru, os doces de cagaita e de araticum, o licor de buriti e o mingau de jatobá são algumas das delícias que expressam o sabor e a criatividade das comunidades. Além disso, muitos pratos são preparados conforme os ciclos da natureza, respeitando a sazonalidade dos frutos e garantindo a sustentabilidade do consumo.

Alimento, território e cultura.

Os saberes culinários do Cerrado são repassados de geração em geração, quase sempre dentro das cozinhas familiares. Mães, avós e anciãos ensinam aos mais jovens não só as técnicas, mas também o valor simbólico de cada alimento. Cozinhar no Cerrado não é apenas preparar comida, mas manter viva uma herança que conecta as pessoas à terra, aos seus ancestrais e à coletividade.

Essa relação entre alimento, território e cultura é profunda e significativa. Comer um prato típico do Cerrado é, ao mesmo tempo, saborear os frutos da natureza e reconhecer a sabedoria de quem aprendeu, ao longo dos séculos, a viver em harmonia com o bioma. A gastronomia do Cerrado, portanto, é um ato de resistência, de celebração e de conexão com tudo o que esse território representa.

Desafios e Resistências: Manter Vivas as Tradições

As tradições culturais do Cerrado enfrentam, hoje, desafios que colocam em risco não apenas os saberes e sabores locais, mas também a própria sobrevivência das comunidades que são guardiãs desse patrimônio. O avanço acelerado da modernização, a expansão da agropecuária, o desmatamento e a perda de biodiversidade afetam diretamente a disponibilidade dos recursos naturais que sustentam práticas ancestrais, desde a coleta de frutos até os rituais culturais que dependem do equilíbrio com a natureza.

As manifestações culturais e o ciclo da Natureza.

Quando uma árvore de pequi é derrubada, não se perde apenas uma planta. Perde-se também parte de uma história, de uma memória coletiva e de um modo de vida que se sustenta na relação íntima com o território. A escassez de frutos, a contaminação das águas e a destruição dos habitats comprometem tanto a segurança alimentar quanto as manifestações culturais, que estão profundamente ligadas ao ciclo da natureza.

Diante desse cenário, as comunidades tradicionais do Cerrado não se resignam. Pelo contrário, elas se organizam, resistem e lutam para proteger seus saberes, seus sabores e seus territórios. Essa resistência se manifesta em ações concretas, como a criação de associações, cooperativas e movimentos que defendem os direitos territoriais e o uso sustentável dos recursos naturais.

Iniciativas De Sucesso na economia.

Além disso, iniciativas que podem promover a valorização da cultura local são as feiras de produtos agroextrativistas, festivais culturais que celebram a música, a dança e a gastronomia do Cerrado, e projetos de turismo comunitário, que convidam visitantes a vivenciar de perto os modos de vida dessas populações. A educação patrimonial também tem sido uma ferramenta poderosa, levando às escolas e às comunidades o conhecimento sobre a importância de preservar tanto a natureza quanto as tradições culturais.

Uma das iniciativas mais bem sucedidas desta década são as franquias de sorveterias que utilizam os sabores típicos do cerrado, com a proeza de reproduzir nos gelados o exato sabor de frutas típicas, com destaque ao araticum. Além de destacar a riqueza dos frutos locais, ainda nos fazem reviver sabores da infância com muitas memórias afetivas.

Essas ações não apenas fortalecem a identidade das comunidades, mas também sensibilizam a sociedade sobre a urgência de proteger o Cerrado e tudo que ele representa. Manter vivas as tradições é, hoje, um ato de resistência e de esperança, que reafirma o valor de uma cultura profundamente enraizada na terra, nos saberes e na sabedoria dos povos do Cerrado.

Por que Preservar os Saberes e Sabores do Cerrado?

Preservar os saberes e sabores do Cerrado é preservar muito mais do que uma tradição. É proteger um patrimônio cultural que carrega, em cada gesto e em cada alimento, a memória, a identidade e a história de povos que aprenderam, ao longo dos séculos, a viver em equilíbrio com um dos biomas mais ricos e ameaçados do planeta.

A importância dessas tradições vai além do aspecto cultural. Elas têm um papel social fundamental, pois fortalecem os laços comunitários, promovem a troca de conhecimentos entre gerações e garantem meios de vida para muitas famílias. No aspecto ambiental, os saberes tradicionais são essenciais para a conservação do Cerrado, pois são baseados no uso sustentável dos recursos naturais, na coleta responsável dos frutos, na preservação das nascentes e na manutenção da biodiversidade.

Bioma e preservação do meio ambiente.

Economicamente, os sabores do Cerrado também representam uma fonte de renda para comunidades extrativistas, quilombolas, indígenas e pequenos agricultores. Produtos como óleo de pequi, castanha de baru, polpas de frutos nativos, doces e artesanato geram trabalho e promovem o desenvolvimento local, de forma alinhada com a preservação do meio ambiente.

Proteger esses saberes é também uma forma de garantir a sustentabilidade do bioma. O conhecimento acumulado por essas populações sobre os ciclos da natureza, as plantas medicinais, os alimentos nativos e as práticas de manejo é indispensável para enfrentar os desafios atuais, como as mudanças climáticas e a degradação ambiental.

O valor dos conhecimentos ancestrais.

Os saberes e sabores do Cerrado representam um patrimônio vivo, que vai muito além das tradições culinárias e dos conhecimentos ancestrais. Eles são expressão de uma relação profunda entre as pessoas e o território, construída a partir do respeito, da observação da natureza e da transmissão de conhecimentos de geração em geração. Preservar essa riqueza é também preservar histórias, modos de vida e uma visão de mundo que valoriza o equilíbrio e a coletividade.

O Cerrado convida cada um de nós a conhecer mais sobre sua cultura, a experimentar seus sabores únicos e a se envolver ativamente na valorização de suas tradições. Seja por meio do apoio aos produtores locais, da participação em eventos culturais, do turismo responsável ou simplesmente divulgando essas histórias, toda ação faz a diferença para manter viva essa herança.

Ações coletivas e sociobiodiversidade.

Que possamos lembrar sempre: proteger o conhecimento popular do Cerrado é cuidar da nossa própria identidade, da natureza e do futuro. Afinal, onde há cultura viva, há também resistência, memória e esperança florescendo junto com a terra.

O artesanato e a fauna típica das trilhas cerradeiras.

O artesanato do Cerrado é uma expressão vibrante da conexão entre cultura e natureza. Entre as peças mais simbólicas, destacam-se aquelas que trazem a iconografia da fauna local, representando animais como o lobo-guará, a ema, o tamanduá-bandeira, o tatu-canastra e a arara-vermelha. Esses elementos não são apenas adornos, mas carregam significados profundos ligados à identidade e ao equilíbrio do bioma.

O artesão e a iconografia local – valorização da identidade cultural.

As mãos habilidosas dos artesãos transformam sementes, fibras, barro, madeira e capim dourado em esculturas, utilitários e objetos decorativos que retratam a beleza e a diversidade do Cerrado. Cada peça conta uma história sobre a convivência harmônica com os animais e sobre a importância da conservação do meio ambiente. Esse tipo de artesanato também gera renda e fortalece a economia das comunidades locais. Além disso, é uma forma de educação ambiental, que sensibiliza quem compra e valoriza o trabalho manual.

A iconografia da fauna do Cerrado no artesanato reforça o orgulho cultural e a necessidade de preservar tanto a biodiversidade quanto os saberes tradicionais. Ao adquirir essas peças, o consumidor leva consigo não só arte, mas também uma mensagem de cuidado com o bioma.

Valorizando as tradições e a riqueza do bioma e sua diversidade.

Cada pessoa pode, de maneira prática, contribuir para a valorização dessa cultura. Consumir produtos locais e da sociobiodiversidade é uma forma de fortalecer a economia das comunidades e reduzir os impactos ambientais. Participar de feiras, apoiar o turismo comunitário e divulgar as tradições do Cerrado são atitudes que ajudam a manter viva essa herança. Além disso, é fundamental buscar conhecimento, ouvir as histórias dos mestres e mestras da cultura local e compartilhar essa riqueza para que mais pessoas reconheçam seu valor.

Preservar os saberes e sabores do Cerrado é um compromisso com a diversidade, com a justiça social e com o futuro do planeta. É reconhecer que, na simplicidade dos ofícios e na riqueza dos alimentos, existe uma sabedoria capaz de ensinar caminhos mais equilibrados e sustentáveis para todos nós.

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Mulheres do Cerrado: Parteiras, Rezadeiras e o Poder Ancestral Feminino https://encantosdocerrado.com/2025/05/25/mulheres-do-cerrado-parteiras-rezadeiras-e-o-poder-ancestral-feminino/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/25/mulheres-do-cerrado-parteiras-rezadeiras-e-o-poder-ancestral-feminino/#respond Mon, 26 May 2025 02:26:03 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=120 Nas vastas paisagens do Cerrado, onde a natureza pulsa em ciclos de resistência e renovação, também brotam saberes ancestrais que atravessam gerações. Entre os campos, veredas e chapadas, a presença feminina se faz raiz, se faz flor e se faz cura. Mulheres que, silenciosamente, moldaram e continuam moldando a história das comunidades do Cerrado, mantendo vivas tradições, práticas de cuidado e formas de resistência cultural.

As mulheres do cerrado e os saberes populares.

Parteiras, rezadeiras, benzedeiras e guardiãs de saberes populares carregam consigo conhecimentos que vão além do simples ato de cuidar. São herdeiras de um patrimônio imaterial tecido com ervas, rezas, mãos que acolhem e palavras que curam. Seus saberes são construídos na relação direta com a natureza, no observar dos ciclos, no sentir dos ventos, no cheiro das plantas e na escuta atenta das necessidades do corpo e da alma.

Apesar de sua importância histórica e social, essas mulheres muitas vezes permanecem invisíveis aos olhos de uma sociedade que valoriza o conhecimento formal e científico, em detrimento dos saberes populares. No entanto, é graças a elas que muitas comunidades rurais e tradicionais do Cerrado seguem firmes, nutrindo-se de práticas que garantem saúde, bem-estar e conexão com o sagrado.

Preservar e valorizar esses saberes não é apenas um gesto de reconhecimento. É uma urgência. É garantir que as gerações futuras possam acessar esse patrimônio de vida, de cura e de espiritualidade. É também um ato de resistência diante das ameaças que cercam tanto o bioma quanto os modos de vida que dele dependem. Ao reconhecer a força dessas mulheres, reconhecemos também a força do Cerrado e de tudo que nele vive.

O Cerrado como Berço de Saberes Femininos

O Cerrado é mais do que um bioma. É um território de vida, onde a conexão entre pessoas e natureza se manifesta de forma profunda e sagrada. Nesse ambiente de diversidade, as mulheres sempre ocuparam um papel central, tecendo relações de cuidado, proteção e transmissão de saberes que atravessam o tempo.

A relação das mulheres com o Cerrado é construída na escuta da terra, na observação dos ciclos da chuva, na colheita das plantas medicinais e no manejo respeitoso dos recursos naturais. Cada erva, cada raiz e cada canto da mata carrega um ensinamento que vai além do visível. São conhecimentos que nascem da prática, da experiência e da vivência cotidiana com a natureza.

O saber feminino nas regiões cerradeiras.

Dentro das comunidades tradicionais, o saber feminino se manifesta de diversas formas. São as parteiras que, com mãos firmes e cheias de ternura, conduzem o nascimento de novas vidas. São as rezadeiras e benzedeiras, que unem fé, palavras e elementos da natureza para aliviar dores do corpo e da alma. São também as agricultoras, guardiãs das sementes, que entendem os ritmos da terra e garantem a alimentação das famílias.

Esse conhecimento não está nos livros, mas nas conversas ao pé do fogão, nas rodas de mulheres, nas histórias contadas enquanto se prepara um remédio caseiro ou se fia o algodão. É um saber que se passa de mãe para filha, de avó para neta, de vizinha para vizinha. E, assim, segue vivo, moldando as práticas de cuidado, de cura e de espiritualidade que sustentam essas comunidades.

O feminino no Cerrado é força, mas também é acolhimento. É resistência, mas também é cuidado. As mulheres, com suas mãos cheias de histórias e saberes, são pilares invisíveis que mantêm vivas as tradições, a cultura e a própria relação das pessoas com o território. Onde há uma mulher que conhece as ervas, que benze, que acolhe e que ensina, há também um pedaço do Cerrado que resiste e floresce.

Parteiras do Cerrado: Guardiãs do Nascimento

Nas comunidades rurais e quilombolas do Cerrado, o nascer sempre foi um ato profundamente conectado à terra, às tradições e à sabedoria feminina. As parteiras, com seus saberes transmitidos oralmente e fortalecidos pela prática, são verdadeiras guardiãs da vida. Suas mãos conduzem não apenas o parto, mas também os ritos de acolhimento que marcam a chegada de uma nova existência ao mundo.

Ao longo da história, essas mulheres desempenharam um papel essencial nas comunidades, especialmente em locais onde o acesso à saúde formal era e, muitas vezes, ainda é limitado. O nascimento, mediado por elas, não é apenas um evento biológico. É um momento cercado de cuidados, rituais e significados. Antes do parto, a parteira acompanha a gestante, orienta sobre as ervas para aliviar desconfortos, indica banhos, chás e rezas que fortalecem o corpo e o espírito da mãe.

Durante o trabalho de parto, cria-se um ambiente de acolhimento e proteção. Muitas vezes, a parteira prepara o espaço com folhas, defumações e orações, pedindo proteção tanto para quem chega quanto para quem dá à luz. Suas mãos firmes sabem exatamente onde tocar, como massagear, como estimular. A intuição, aliada ao conhecimento ancestral, guia cada gesto, cada decisão.

As parteiras como autoridade local.

Após o nascimento, os cuidados seguem. O umbigo é tratado com ervas específicas, o banho do bebê leva folhas que protegem contra males e fortalecem. A mãe recebe orientações sobre o resguardo, um tempo sagrado de recuperação física e espiritual, acompanhado de alimentação especial e restrições que visam sua saúde e bem-estar.

Histórias sobre parteiras se multiplicam pelo Cerrado. Parteiras contam que ajudaram a trazer ao mundo mais de 300 crianças, muitas delas hoje adultas, que ainda a procuram não só pela lembrança do nascimento, mas pelos conselhos que só ela sabe dar. Elas se lembram de cada parto que aconteceu numa noite de muita chuva, onde, à luz de lamparinas e com a ajuda de orações e chá de alecrim do campo, uma criança veio ao mundo forte e saudável, apesar das dificuldades do caminho.

Muitos partos, que antes aconteciam no aconchego dos lares, passam a ser vistos como eventos que só podem ocorrer em hospitais, desconsiderando os conhecimentos que essas mulheres acumulam há gerações. Mas as parteiras ainda atuam em região do interior, onde é mais difícil o acesso a hospitais.

Preservar a memória e os ensinamentos dessas mulheres é reconhecer que o nascimento não é apenas um evento médico, mas também um rito de passagem, carregado de significados, que conecta passado, presente e futuro no coração do Cerrado.

Rezadeiras: As Mulheres que Curam com Fé e Palavras

Em muitas comunidades do Cerrado, quando a dor chega, seja no corpo ou na alma, é para a rezadeira que as pessoas se voltam. Elas são mulheres que carregam consigo um dom especial, reconhecido e respeitado por quem vive próximo à terra e às tradições. Suas mãos abençoadas, suas palavras entrelaçadas em fé e seus saberes antigos são fontes de alívio, proteção e cura.

A rezadeira não é apenas quem reza. Ela é, antes de tudo, uma mediadora entre o visível e o invisível, entre o mundo físico e o espiritual. Seu trabalho se manifesta através dos benzimentos, orações, defumações, uso de ervas e rituais que combinam elementos da natureza com a espiritualidade popular. Ela sabe, por exemplo, qual folha serve para tirar quebranto, qual raiz espanta o mau-olhado e qual reza deve ser feita para aliviar dores, assombros ou medos.

As benzedeiras cuidando desde a queda do umbigo do bebê ao mau olhado.

O atendimento de uma rezadeira geralmente começa com a escuta. A pessoa chega, conta o que sente, e então ela prepara o espaço: uma vela acesa, um ramo de arruda, alecrim, guiné ou manjericão, e palavras que se repetem baixinho, quase como um sussurro que parece embalar a dor e transformá-la. Enquanto benze, faz o sinal da cruz no corpo do aflito, sopra, passa o ramo, e invoca forças de proteção, saúde e equilíbrio.

Esses saberes não vêm dos livros, mas da convivência com as mais velhas, da observação, da prática e, sobretudo, da fé. É uma sabedoria que une a força da natureza — através das plantas, dos elementos, dos ciclos — com a ancestralidade e a espiritualidade cultivadas ao longo de gerações.

No Cerrado, a fé popular é muito mais do que uma crença individual. Ela é parte viva da cultura, uma forma coletiva de enfrentar os desafios, de encontrar equilíbrio e de manter a comunidade unida. As rezadeiras, portanto, não são apenas mulheres de fé; são também guardiãs de um patrimônio cultural imaterial, que resiste ao tempo, à modernização e às tentativas de apagamento.

Procurar uma rezadeira não é sinal de fraqueza, nem de superstição. É, na verdade, um reconhecimento de que há saberes que a ciência não explica, mas que a vida confirma. Que existe cura no gesto simples, na palavra certa, na planta colhida com respeito e na fé que atravessa gerações. Elas são a prova viva de que, no Cerrado, a espiritualidade caminha de mãos dadas com a natureza e que, na força do feminino, mora a capacidade de transformar, proteger e curar.

O Poder Ancestral Feminino no Cerrado

No coração do Cerrado, pulsa um poder silencioso, mas profundamente transformador. É o poder ancestral feminino, tecido no dia a dia das mulheres que, com suas mãos, palavras e saberes, mantêm vivas as tradições, a cultura e a própria identidade de suas comunidades. São parteiras, rezadeiras, benzedeiras, cozinheiras, guardiãs de sementes e das memórias que atravessam gerações.

Essas mulheres não apenas cuidam dos corpos e das almas, mas também sustentam modos de vida que dialogam diretamente com a natureza e com os ensinamentos dos ancestrais. Seus saberes são passados de mãe para filha, de avó para neta, como fios que, ao serem trançados, formam uma rede de resistência, de cuidado coletivo e de conexão com o sagrado.

O feminino nos campos é, acima de tudo, símbolo de resistência cultural. Em cada parto conduzido, em cada benzeção feita à sombra de um pé de pequi, em cada remédio preparado com ervas da vereda, há um gesto de afirmação: a vida comunitária é possível, e os saberes tradicionais têm valor, mesmo em meio às pressões do mundo moderno.

O conhecimento e as relações com a terra.

Esses conhecimentos, muitas vezes invisíveis aos olhos da sociedade dominante, são na verdade pilares que sustentam comunidades inteiras. São eles que garantem a continuidade de práticas agrícolas, de rituais, de formas de cuidado e de relações respeitosas com a terra. São eles que mantêm vivos os vínculos com a memória, com os antepassados e com aquilo que não se vê, mas se sente.

Reconhecer o valor dessas mulheres vai muito além de um ato de admiração. É uma necessidade urgente de preservação cultural e social. É entender que esses saberes constituem um patrimônio vivo, que precisa ser protegido, valorizado e transmitido. Isso envolve não só o reconhecimento simbólico. A benzedeira recebe uma mãe aflita para benzer o seu bebê contra o quebranto, protegê-lo do mau olhada e forças negativas, ou mesmo para ensinar-lhe um chá de guaco com mel.

Ao defender o Cerrado, defende-se também suas mulheres e seus saberes. E ao proteger o feminino ancestral que nele habita, protege-se uma forma de vida que respeita, acolhe e honra tanto a natureza quanto as pessoas que dela fazem parte. Porque no Cerrado, a força do feminino é, acima de tudo, a força da vida.

Parteira e benzedeiras: autoridades presentes na memória coletiva das comunidades.

Preservar e divulgar os saberes das parteiras, rezadeiras e guardiãs de tradições do Cerrado não é apenas um gesto de respeito, mas um compromisso com a própria continuidade da vida, da cultura e da história desse território. Esses conhecimentos são frutos de gerações que aprenderam a observar a natureza, compreender seus sinais e transformar essa relação em práticas de cuidado, cura e bem-estar coletivo.

O valor desses saberes ultrapassa a dimensão simbólica. Eles são parte fundamental do patrimônio cultural imaterial, carregando consigo histórias de resistência, superação e conexão profunda com o meio ambiente. São práticas que ensinam não apenas a cuidar do corpo e do espírito, mas também a viver de forma harmônica com a terra, respeitando seus ciclos e seus limites.

As benzedeiras com seus ritos e práticas sustentáveis.

Os conhecimentos tradicionais contribuem diretamente para a construção de práticas sustentáveis. As parteiras, com seus saberes sobre o corpo e o nascimento, garantem um cuidado humanizado e próximo das famílias. As rezadeiras, com suas ervas e orações, fortalecem a saúde comunitária e mantêm viva uma medicina que integra espiritualidade, natureza e coletividade.

Preservar esses saberes é também fortalecer as identidades locais. É garantir que as futuras gerações conheçam suas raízes, suas histórias e se sintam parte de um ciclo maior de pertencimento. Cada reza, cada benzimento, cada parto conduzido com amor e sabedoria carrega não só uma prática, mas também uma afirmação de quem somos enquanto povo do Cerrado.

Divulgar essas histórias é também um ato de resistência e amor. É manter acesa a chama de um conhecimento que não pode se perder, porque nele reside não só a sabedoria do passado, mas também as respostas para um futuro mais justo, sustentável e conectado com a essência da vida.

Conclusão – Um Chamado ao Cuidado e à Memória

Ao olhar com sensibilidade para a presença das parteiras, rezadeiras e mulheres guardiãs dos saberes ancestrais do Cerrado, compreendemos que são elas as verdadeiras tecelãs da vida. Suas mãos, palavras e gestos mantêm acesa a chama de uma cultura que resiste, floresce e ensina que o cuidado coletivo é a base da existência.

Essas mulheres não apenas acolhem nascimentos, aliviam dores ou conduzem rituais de cura. Elas sustentam, com sua sabedoria, os vínculos que unem pessoas, natureza e espiritualidade. São guardiãs de conhecimentos e fazem toda a diferença no fortalecimento das comunidades e na preservação das identidades.

Não podemos nos esquecer de um passado não muito distante no interior do país, quando grande parte da população vivia em áreas rurais, os casais tinham muitos filhos com nascimentos de parto normal dentro da própria residência, sem iluminação elétrica e pouquíssimo acesso a hospitais. Era nesse contexto que entravam em ação a parteira e a benzedeira. Com suas rezas, o apoio às mães e às crianças, os pedidos de proteção não apenas físico como também espiritual, além da infinidade de alimentos e chás vindos da terra. O chá de guaco com mel para curar as enfermidades respiratórias, uma benzeção com ramo de erva-cidreira, um pouco de erva de Santa Maria com sal para curar um pé torcido…

O quintal da benzedeira cheio de plantinhas medicinais, o fogão a lenha sempre aceso, o pote sempre cheio de bolachas de polvilho para servir a todos que chegassem em busca de socorro. A vizinhança ainda mantinha aceso o espírito de coletividade, as crianças cresciam todas brincando juntas.

Que possamos ouvir suas histórias, aprender com seus ensinamentos e fazer ecoar suas vozes. Pois, enquanto existir uma mulher que benze, que acolhe um parto ou que transmite uma reza, existirá também um Cerrado que resiste, que cuida e que ensina a beleza de viver em harmonia com a terra e com o sagrado.

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Contos de Caminho: Histórias Narradas nas Andanças entre Vilas e Povoados https://encantosdocerrado.com/2025/05/21/contos-de-caminho-historias-narradas-nas-andancas-entre-vilas-e-povoados/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/21/contos-de-caminho-historias-narradas-nas-andancas-entre-vilas-e-povoados/#respond Wed, 21 May 2025 03:27:22 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=116 Nas vastas paisagens do Cerrado, entre trilhas de terra vermelha, veredas sombreadas por vilas de pescadores e povoados de poucas casas e muitos causos, floresce uma tradição que resiste ao tempo: a arte de contar histórias. Essas narrativas, passadas de boca em boca, carregam não apenas palavras, mas memórias, saberes e modos de viver que se entrelaçam com a própria identidade das comunidades que habitam essa imensidão brasileira.

Contos de Caminho é como chamamos as histórias que nascem e se espalham durante as andanças entre vilas e lugarejos. São relatos vividos, reinventados ou apenas sonhados, contados por quem segue estrada afora, seja a pé, a cavalo ou em carro de boi. Essas histórias se movem junto com seus narradores e ganham novos contornos a cada parada, mantendo viva uma cultura que sobrevive na oralidade e no encontro.

Este texto é um convite para que você caminhe conosco por essas trilhas de palavra, escute o eco dos antigos contadores e descubra como cada canto do Cerrado guarda um conto à espera de ser ouvido. Vamos juntos seguir os rastros das narrativas que unem pessoas, lugares e tempos diferentes por meio da força da voz e da imaginação.

O Cerrado, com sua imensidão de campos, chapadas e matas fechadas, é mais que um bioma de riquezas naturais — é um território onde as histórias se movem junto com as pessoas. Entre vilas afastadas e pequenos povoados, os caminhos de terra batida, as veredas silenciosas e as trilhas que serpenteiam o mato formam verdadeiras rotas narrativas, por onde circulam não apenas viajantes, mas também causos, lendas e memórias.

O Cerrado Como Cenário de Narrativas Itinerantes.

Esses trajetos, muitas vezes percorridos a pé ou a cavalo, conectam comunidades e servem de palco para o encontro entre diferentes modos de viver. Nas paradas sob a sombra de uma árvore ou ao redor do fogo em um rancho improvisado, as histórias ganham vida e se multiplicam. Cada curva da estrada guarda lembranças de encontros, descobertas e experiências que se transformam em palavras contadas com emoção, exagero ou sabedoria.

A importância das estradas como rotas de histórias.

O andarilho solitário, o tropeiro conduzindo sua tropa ou o romeiro em sua fé são figuras centrais nesse movimento contínuo de narrativas. Eles não apenas levam mercadorias ou intenções — carregam também vozes, sotaques e episódios vividos ou ouvidos. São transmissores da tradição oral, mensageiros de um tempo em que a palavra dita era o principal elo entre o passado e o presente.

Nesse cenário moldado pela natureza e pela experiência humana, o Cerrado se afirma como uma terra onde as histórias não ficam presas às páginas, mas seguem seu curso pelas trilhas abertas no chão e na memória coletiva.

A presença de autoridades ancestrais da fauna cerradeira.

É nesses trechos mais isolados que os perigos espreitam, não apenas nos desvios do terreno ou nas mudanças bruscas de tempo, mas também na presença de animais que habitam esses domínios com autoridade ancestral.

Entre os mais temidos estão as cobras, muitas vezes camufladas entre folhas secas e galhos caídos. Jararacas, cascavéis e sucuris são presenças reais nas trilhas do Cerrado, e seus encontros com os viajantes costumam render histórias de susto, astúcia ou sobrevivência. O silêncio da mata é quebrado apenas pelo som seco de um chocalho ou pelo farfalhar repentino de algo que se arrasta. Para os mais antigos, esses encontros não são apenas acidentes — são avisos da mata, sinais de que é preciso andar com olhos atentos e passos respeitosos.

Mais adiante, nos sertões profundos e nas bordas de rios sombreados, a figura imponente da onça marca presença como um símbolo máximo da força e do mistério do Cerrado. Seja a onça parda, com seu jeito furtivo e quase invisível, seja a onça pintada, majestosa e rara, ambas despertam fascínio e temor. Dizem que quando a onça cruza o caminho, o silêncio se impõe como um manto. Poucos a veem, mas muitos sentem quando ela está por perto — é o tipo de presença que transforma qualquer caminho em reverência.

Esses perigos naturais, longe de afastarem os contadores de histórias, servem como combustível para os relatos mais marcantes. São eles que temperam os contos com suspense, coragem e mistério, fazendo das trilhas do Cerrado não apenas rotas de passagem, mas caminhos cheios de narrativas vivas, nascidas do encontro entre o homem e a força indomável da natureza.

A relevância dos contadores de histórias

Nas paisagens vastas do Cerrado, onde a modernidade chega devagar e o tempo parece ter outro ritmo, existem guardiões de um saber antigo que não se aprende nos livros. São os narradores populares — violeiros, romeiros, anciãos, vaqueiros, caçadores e pescadores — figuras que mantêm viva a tradição oral nas comunidades espalhadas entre serras, veredas e povoados.

Esses contadores de histórias não usam microfone nem papel. Suas vozes ecoam nas rodas de fogueira, nas festas de santo, nas paradas à beira da estrada e nas noites longas depois da lida. Com olhos brilhando de memória e gestos cheios de intenção, eles conduzem os ouvintes por histórias que misturam lembrança e invenção, criando um espaço onde a realidade se encontra com o encantamento.

O violeiro canta causos entre uma moda e outra, entrelaçando cordas e palavras com a mesma destreza. Já o romeiro, em suas andanças de fé, carrega não só promessas, mas também histórias colhidas em muitos caminhos. Os anciãos, com o peso dos anos e a leveza da sabedoria, compartilham experiências que ultrapassam o indivíduo e pertencem à coletividade.

A prática da contação de histórias nas rodas de fogueira, festas e paradas de viagem.

Entre esses guardiões, os vaqueiros se destacam com seus relatos de lida brava no mato, encontros com boi bravo ou com seres misteriosos nas campinas. Os caçadores, por sua vez, narram passagens que oscilam entre o real e o lendário — encontros com onças, visagens ou barulhos inexplicáveis vindos do mato. Já os pescadores transformam suas jornadas pelos rios em epopeias aquáticas, onde peixes gigantes, redemoinhos traiçoeiros e luzes estranhas sempre têm um papel.

Em cada fala, há mais do que entretenimento: há memória, cultura e identidade. Os contos carregam conselhos, ensinamentos e formas de ver o mundo moldadas pelo Cerrado e por seus modos de vida. Escutá-los é entrar em um território onde o tempo se dobra, e o que parece invenção carrega, no fundo, uma verdade mais profunda sobre quem somos e de onde viemos.

Tipos de Contos Encontrados no Caminho

Ao longo das estradas de chão e das trilhas escondidas do Cerrado, os contos que se espalham entre uma vila e outra formam um mosaico de emoções, mistérios e sabedoria popular. Cada parada na sombra de um jatobá, cada pouso à beira de um riacho, é uma oportunidade para que alguém conte — ou aumente — uma história que ouviu, viveu ou simplesmente imaginou. Esses relatos, carregados de elementos do cotidiano e da fantasia, revelam muito sobre o espírito do povo do campo.

Causos de assombração.

Os causos de assombração são talvez os mais lembrados nas rodas noturnas, quando o fogo crepita e a mata ao redor parece escutar em silêncio. Neles, aparecem visagens, vultos na estrada, crianças encantadas e entidades que surgem do nada para testar a coragem dos viajantes. É comum ouvir histórias de quem cruzou com a Mula-sem-cabeça ou com a velha do saco, ou ainda relatos sobre almas penadas vagando por antigos cemitérios de beira de estrada.

Contos de encantamento.

Há também os contos de encantamento, em que a natureza se transforma em palco do inexplicável. Árvores que falam, fontes que curam, pedras que se movem à noite. São narrativas que nascem do espanto diante do desconhecido e que alimentam o imaginário coletivo com beleza e mistério.

Histórias de amor e bravura.

Não faltam, porém, histórias de amor e bravura. São relatos de encontros improváveis, de paixões que desafiaram distâncias e preconceitos, ou de heróis anônimos que enfrentaram seca, bicho brabo ou até injustiça para proteger o que amavam. Esses contos carregam emoção e servem de inspiração, especialmente quando narram gestos simples que se tornam grandiosos pela coragem envolvida.

Lendas locais e personagens folclóricos.

Entre uma história e outra, surgem também as lendas locais e figuras do folclore do Cerrado. Animais encantados, guardiões de veredas, curandeiros com poderes misteriosos. Cada comunidade tem seus personagens únicos, cujas façanhas se espalham de boca em boca, atravessando gerações.

Causos de engano

E como não poderia faltar, os casos engraçados completam o repertório. São histórias de gente atrapalhada, de confusões em festas, de mentiras desmascaradas e situações inusitadas que arrancam risos e, muitas vezes, carregam lições de vida. São esses contos, recheados de humor e sabedoria, que mantêm viva a alegria e a leveza, mesmo diante das dificuldades do dia a dia.

Esses diferentes tipos de narrativa fazem do caminho um espaço de aprendizado e encantamento. Cada conto compartilhado é uma semente lançada no vento, pronta para germinar na memória de quem escuta e seguir adiante, bordando o Cerrado com histórias que nunca morrem.

A Tradição Oral e sua Importância Cultural

Nas regiões do Cerrado, onde muitas comunidades ainda vivem em sintonia com os ciclos da terra e o ritmo das estações, a palavra falada continua sendo um dos principais instrumentos de transmissão de conhecimento. A tradição oral é um laço invisível, mas poderoso, que une gerações, sustenta a identidade coletiva e fortalece o sentimento de pertencimento.

Vozes que Transmitem Raízes

Os contos que circulam entre vilas e povoados não são apenas entretenimento. Eles carregam marcas profundas da história local, revelam os valores de um povo e resgatam memórias que, de outro modo, poderiam se perder. Ao ouvir um causo contado por um ancião, uma criança aprende mais do que um enredo: ela se conecta com a vivência de sua comunidade, com seus medos e esperanças, com o jeito próprio de enxergar o mundo.

Esse processo é essencial para manter viva a identidade cultural. A oralidade permite que saberes sejam passados de forma natural, muitas vezes durante o trabalho no roçado, à beira do fogão a lenha ou nas conversas ao entardecer. Cada palavra dita tem peso, ritmo e cor — e vai moldando a maneira como as pessoas pensam, se relacionam e constroem sua história.

A Força da Memória e do Pertencimento

Na tradição oral, memória não é só lembrança: é construção ativa. Quando alguém conta um caso, revive um fato, reinterpreta um sentimento. Ao escutar, o outro também participa desse processo, recriando a história dentro de si. Assim, contar e ouvir se tornam atos de pertencimento. Quem narra se afirma como parte de uma cultura, e quem escuta se reconhece nela.

Esse vínculo fortalece a coesão social. As histórias ajudam a explicar o mundo, reforçam normas de convivência, ensinam como agir diante do desconhecido. São como bússolas simbólicas, passadas de mão em mão, que orientam as comunidades em seu caminho coletivo.

Narrativas que Inspiram Linguagem, Música e Festa

A influência dos contos orais vai além da fala cotidiana. Eles moldam expressões regionais, ditados populares e modos de se comunicar. Muitos trejeitos do linguajar do Cerrado têm origem nas histórias contadas à beira do fogo ou nos causos exagerados que animam encontros de família.

Na música, essa presença também é marcante. Modas de viola, cantigas de roda, benditos e emboladas muitas vezes se inspiram em personagens e situações dessas narrativas orais. Um conto de amor vira canção. Um causo de assombração se transforma em lamento ou desafio cantado. Os músicos populares, com suas violas e rabecas, são também guardiões dessas histórias transformadas em som.

E nas festas populares, a tradição oral ganha corpo e cor. Folias, reisados, congadas e festejos religiosos são momentos em que as histórias saem da boca e tomam as ruas, os terreiros, as capelas. Ali, o mito se mistura à dança, o sagrado se une ao riso, e tudo aquilo que foi contado ao pé do ouvido se torna celebração viva da cultura.

No Cerrado, a oralidade é mais do que forma de contar: é forma de existir. É por meio dela que o povo segue se reconhecendo, se reinventando e resistindo, mesmo diante das transformações do tempo. Cada conto, cada palavra guardada e passada adiante, é um gesto de preservação cultural — e uma semente lançada para o futuro.

A ENTEADA E O PÉ DE ARROZ

Um conto maravilhoso da literatura oral, narrado pelo ferroviário Izaías A. de Souza.

“Tinha uma menininha que morria de saudade da mãe dela, porque ela tinha morrido. E ela morava com uma madrasta muito malvada, e o pai dela viajava muito. Mas a menina era boazinha, mas era muito pequenininha, muito magrinha e não conseguia fazer as coisas direito, que não dava conta. Aí, um dia, a madrasta falou bem brava:

-Menina, eu vou sair e você vai ficar cuidando do pé de arroz. O seu pai não quer que acontece nada com esse pé de arroz, tem que cuidar por causa do passarinho! Se acontecer alguma coisa com o pé de arroz, você vai ver o que é bom! Você vai ver, entendeu?

E a menininha, coitada, foi cuidar do pé de arroz. Colocou uma cadeira perto do pé de arroz e ficou olhando, olhando, olhando… Ela achava tão bonito os passarinho avoando no céu, bem alto. E ficou ali olhando. Mas aí, né, ela não conseguia mais ficar olhando, de tão cansada, de tanto trabalhar. Ela era pequenininha, né? E aí, ela dormiu sem querer. Aí, né, os passarinho veio tudo, voando, chegou no pé de arroz e comeu tudo, acabou com tudo e a menininha dormindo, coitada. Quando a madrasta chegou, que ela viu aquela passarinhada e a enteada dormindo, vixi, aí ela fez aquele pampeiro danado! Bateu na menina, judiou, acabou com a menina. Mas aí, né, ela ficou com medo porque se o pai chegasse e visse a menina toda machucada, ele ia, né? Então, o quê que ela fez? Pegou a menininha, né, e enterrou ela viva! Já pensou? Enterrou ela viva, coitadinho, a menininha. Depois, quando o pai chegou de viagem, a primeira coisa que ele perguntou foi da filhinha dele. Ele não viu a filhinha dele, então perguntou, ele falou:

-Cadê a minha filhinha?

Mas a madrasta tentou mentir, ela era mentirosa, queria agradar o marido. Tentou mentir e falou que ela tava brincando lá fora, mas aí depois, demorou e aí ela disse que não sabia onde que tava a menininha. E o pai mandou todo mundo procurar pela filha. Mandou procurar, procuraram, procuraram, procuraram, e aí, né, aquele espanto gera! Os homens encontraram a coitadinho enterrada! Enterrada no quintal, já pensou? Quando trouxeram a menininha, parecia que ela tava só dormindo, os olhinhos fechados, colocaram na mesa, as mãozinhas cruzadas no peito, parecia que tava dormindo, tão linda a menina, coitada, indefesa de tudo! Mas aí, né, o pai queria saber quem tinha feito tamanha barbaridade com a sua filhinha, ele desesperado, mas queria saber a verdade. E a madrasta lá, na maior inocência, chorando, parecendo que tava sofrendo, né? Fazendo, né, daquele jeito, fingindo. E o marido nem desconfiava. Mandou testar todo mundo, na hora do enterro, e aí, né, quando tava todo mundo lá, reuniu todo mundo, e aí mandou cada um, de um por um, né, pra chegar perto do corpo e aí, ia testar todo mundo. Quando chegou o primeiro homem e cortou um pedacinho do cabelinho da menininha, ela abriu o olho e cantou, olhando, né, cantou assim:

-Não me corte meu cabelinho, ó capanga do meu pai, foi a madrasta que me enterrou, xô, xô, passarinho do arroz!

Aí, né, foi o segundo, chegou perto, né, cortou um pedacinho da orelhinha dela, mas eles cortava com dó, tinha muita dó da menininha, aí ela abriu de novo o olho e cantou de novo, cantou de novo assim:

-Não me corte minha orelhinha, ó capanga do meu pai, foi a madrasta que me enterrou, xô, xô, passarinho do arroz!

E assim foi, né, aquele sofrimento, todo mundo tinha que ir até o corpo, aí veio o outro, né? E tudo igual, ele cortou um pedacinho do nariz dela, e ela, né, cantou, aí ela cantou também:

-Não me corte meu narizinho, ó capanga do meu pai, foi a madrasta que me enterrou, xô, xô, passarinho do arroz!

E assim foi indo, foi, foi, foi… E aí, né, cada vez que ela cantava, a madrasta foi ficando com medo, com aquele medo, pra não descobrir a verdade, quando chegou a vez dela, né, que ela já tava apavorada, quando chegou a vez dela, ela tava morrendo de medo, ela foi até perto do corpo, mas ela tava com medo, então ela só chegou assim meio afastada, pegou um pedacinho do sapato da menina, mas a menininha abriu o o/ho e levantou pra o/har pra ela, né, levantou e cantou:

-Não me corte meu sapatinho, ó madrasta do meu pai, foi a senhora que me enterrou, xô, xô, passarinho do arroz!

E aí, né, todo mundo descobriu, todo mundo, e foi assim a historinha. Essa a gente conta, a gente arrepia tudo, né?”

Encerramento

Os contos populares que percorrem os caminhos do Cerrado são mais do que narrativas passageiras. São parte de um patrimônio imaterial que vive na memória, na fala e no coração do povo. Carregam em si a beleza do improviso, a sabedoria dos mais velhos e o encanto das palavras que resistem ao tempo. Cada história, por mais simples que pareça, é um elo que une passado, presente e futuro — um fio invisível que costura a identidade de comunidades inteiras.

Valorizar essas histórias é também valorizar quem as conta e o modo de vida que as sustenta. Escutar com atenção, registrar com carinho e repassar com verdade são formas de manter acesa a chama dessa tradição tão rica. Que os leitores se tornem também guardiões dessas memórias, repassando os causos que ouviram dos avós, dos vizinhos, dos andarilhos que cruzam os caminhos de terra com a alma cheia de palavras.

Porque no Cerrado, o silêncio da trilha nunca é vazio — ele guarda vozes que o vento leva e traz, esperando apenas um ouvido atento para recomeçar a história.

Por onde o pé pisa, a palavra ecoa. E cada caminho guarda um conto à espera de quem escute.

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Guardadores de Palavras: Mestres da Oralidade nas Comunidades do Cerrado https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/guardadores-de-palavras-mestres-da-oralidade-nas-comunidades-do-cerrado/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/guardadores-de-palavras-mestres-da-oralidade-nas-comunidades-do-cerrado/#respond Mon, 19 May 2025 02:56:08 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=113 A oralidade, mais do que uma forma de comunicação, é um modo de existência para muitas comunidades tradicionais do Cerrado. É por meio dela que se compartilham histórias de origem, ensinamentos sobre a natureza, modos de rezar, curar e viver em coletividade. Em territórios aonde o livro raramente chega e a escrita não é a principal forma de registro, a fala se torna um elo vital entre passado, presente e futuro.

Os guardadores de palavras têm um papel essencial nesse processo. Eles não apenas narram causos ou entoam cantigas, mas cultivam a memória coletiva e fortalecem a identidade cultural dos seus povos. Os narradores das histórias orais trazem como pano de fundo, as cores locais.

Pessoas comuns à primeira vista, mas que carregam em suas memórias e vozes um tesouro imaterial construído ao longo de gerações. Seja em uma roda de conversa sob o pé de manga ou em uma celebração religiosa, sua presença garante que as raízes não se percam diante das transformações do mundo. São eles que mantêm viva a alma do Cerrado, em cada palavra cuidadosamente guardada e compartilhada.

Os contadores de histórias orais

Guardadores de palavras são pessoas que, através da fala, conservam e transmitem os saberes, histórias e tradições de seus povos. Não são apenas contadores de histórias, mas verdadeiros portadores de uma herança cultural que resiste ao tempo e às mudanças. O termo carrega um sentido simbólico profundo: guardar palavras é, antes de tudo, proteger mundos inteiros que vivem na linguagem oral.

Nas comunidades do Cerrado, essas figuras aparecem de diferentes formas. Podem ser anciãos que compartilham vivências e lições; contadores de causos que narram acontecimentos com humor e sabedoria; rezadores que conduzem orações e rituais, muitas vezes em línguas ancestrais; ou cantadores que embalam a vida cotidiana com cantigas tradicionais. Todos têm em comum o dom da palavra como ponte entre gerações.

A função social dos guardadores de palavras é essencial. Eles mantêm viva a memória coletiva, preservam o modo de ser de suas comunidades e fortalecem os vínculos entre as pessoas. Suas vozes carregam não só o conteúdo das histórias, mas também os sentimentos, os valores e o ritmo próprio da cultura local. São guardiões da identidade e da sabedoria popular, pilares invisíveis que sustentam a riqueza cultural do Cerrado.

Personagens reais: quem são esses Mestres?

Em meio às paisagens do Cerrado, entre as veredas e os chapadões, vivem personagens que mantêm acesa a chama da oralidade. São mestres populares, guardadores de palavras, cuja sabedoria não foi aprendida em livros, mas herdada pelo convívio, pela escuta e pela vivência comunitária.

A seguir, apresentaremos alguns exemplos entrevistados no leste de Mato Grosso do Sul, exímios contadores de histórias orais e constam na dissertação de Mestrado intitulada “Literatura oral: as narrativas populares no leste de Mato Grosso do Sul”(UFMS), com o objetivo de resgatar e registrar as narrativas orais a partir da década de 2000:

Abraão F. da Silva (1912): popularmente conhecido como Bento, de origem negra, conheceu um Brasil ainda sertão, ainda na adolescência trabalhou na roça e se aposentou como ferroviário. Sua sogra era uma benzedeira muito estimada e Bento contou muitas histórias transmitidas por seus pais. Narrou as histórias: nego d’água, nego d’água no rio Pardo, o compadre e a comadre.

Anísia Gomes F. Oliveira (1919): sua mãe era alagoana e seu pai pernambucano, migrou para Mato Grosso e se casou com um ferroviário. Mantém vivas histórias de seus pais e a cultura nordestina, inclusive, afirma que uma de suas primas fugiu para acompanhar o cunhado viúvo de Lampião. Narrou histórias sobre Lampião, Padre Cícero, lobisomem, luto pela cachorra, o burro do compadre, o menino e o poço, como quebrar o encanto do lobisomem, a cura.

Armando L. Pereira (1925): de origem holandesa, seus pais eram mineiros, migraram até se fixarem na divisa entre Mato Grosso e São Paulo. Na região de cerrado, foi dono da maior loja de secos e molhados, o que lhe permitiu relacionar-se com pessoas de todas as classes, do mais rico fazendeiro ao mais temido bandoleiro da região. Narrou as histórias: o Zé da onça, fazenda do Zeca Vida, Camisa de Couro, o fogo sobre o rio.

Eunice P. da Silva (1941): popularmente conhecida como dona Preta, seu pai era mineiro e sua mãe de origens baianas. Neta de Mané Preto, acreditamos que seu avô vivenciou a época escravagista. Seu marido era ferroviário, por isso dona Preta morou em várias cidades de Mato Grosso do Sul e interior de São Paulo, nas chamadas “turmas” da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Narrou as histórias: a cachorra na quaresma, quem era o lobisomem, a cobra maminha, o choro da criança, medo de lobisomem, o finado que virou onça, o padeiro da madrugada.

Francisco Gomes (1934): pescador muito conhecido da Colônia de Pescadores de Jupiá, Chicão nasceu na Bahia, migrou para o estado de São Paulo até se estabelecer às margens do rio Paraná. Simpático e risonho, Chicão se declara cético diante dos causos mentirosos, mesmo assim é um exímio contador de histórias orais. Narrou as histórias: o túnel do palácio de D. Pedro, o compadre caboclo d’água, caboclo d’água ou ariranha, como pescar o jaú, Saci Pererê ou morcego vampiro.

Hildebrando Lopes (1930): seu pai era imigrante português e sua mãe paulista. Aposentou-se como ferroviário, mas afirma que passou a maior parte de sua vida num barco pescando. Observador, seu Brando narrou histórias contadas por seus pais e as vivenciadas com amigos de pescaria. Narrou as histórias sobre: aparição na caçada, a onça na fazenda Serrinha, a cigarrinha, caçadas e pescarias.

Ismael Cabanha (1922): de origem paraguaia, aposentou-se como ferroviário e afirma que vivenciou a época em que o interior de Mato Grosso do Sul se reduzia a pequenas vilas localizadas na imensidão do cerrado e matas virgens, quando ainda se preservava a tradição de contar histórias para as crianças, após um dia de trabalho. Narrou as histórias: Maria Preta conta histórias, o homem na beira do rio, Saci Pererê, o turco da água e o Zé Lata, caçadas e pescarias.

Izaías Antônio de Souza (1931): Narrou as histórias sobre: enterro (o pote de ouro), a enteada e o pé de arroz, a bola de fogo, caçada na Sexta-feira da Paixão, o pé de arruda, o enterro (pote de ouro).

José Moraes (1938): residente na Colônia de Pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná, Zé Moraes é pescador profissional. Apaixonado pelas matas e pelos rios, exerceu outros ofícios em fazendas, lavouras, fábricas, até exercer finalmente a profissão de pescador. É um grande contador de histórias, com ênfase ao aspecto cômico. Narrou as histórias sobre: a onça sussuarana no Jupiazinho, jararacuçu na lagoa do Jacaré, o jaú, sucuri na lagoa do jacaré, capitão do campo.

Jurandir Queiroz (1938): de origem negra e pais baianos, afirma que seus pais migraram para São Paulo atraídos pelo garimpo, trabalhando em cafezais e depois como ferroviário. Jurandir é militar reformado e gosta de contar histórias, inclusive as que vieram na bagagem cultural de seus ancestrais. Narrou as histórias: bigamia e o enterro, o abacaxi de ouro, enterro para o aleijadinho, a anta e o caipora, Pé de Garrafa, o jaú que comia gente, nego d’água morto, bola de fogo, despedida do marido morto.

Wandwald A. de Souza (1938): sua família é composta por imigrantes europeus, negros e índios, o pai era cuiabano e a mãe sul-mato-grossense.  Wando aposentou-se como ferroviário e devido à profissão, residiu a maior parte de sua vida em outras localidades. E na juventude, sua paixão era pescar com parentes e amigos. Com sua vivência, Wando tornou-se um grande narrador de histórias.  Narrou as histórias: as ressurreições da mulher do Dominguinhos, o lobisomem perto da lagoa, o caçador e a cobra sucuri, onça e zagaia, o pulo do boi.

Essa pequena síntese retratando os entrevistados na década de 2000, traz também traços das cores locais e do contexto histórico: lembrando que o interesse militar e econômico na região.

Contexto histórico.

No início do século XX, o leste de Mato Grosso do Sul começou a viver uma transformação marcada pela presença do Exército Brasileiro e pela construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Essa região, até então marcada por longas extensões de matas e cerrado, ocupada por povos indígenas, pequenos agricultores e comunidades tradicionais, passou a ser alvo de uma ocupação estratégica e econômica.

A atuação do Exército esteve ligada principalmente à defesa das fronteiras e ao controle de uma área considerada sensível, devido à proximidade com o Paraguai e à memória ainda recente da Guerra da Tríplice Aliança. A instalação de unidades militares, como em Campo Grande e Três Lagoas, trouxe uma presença constante do poder central, reforçando a soberania nacional em uma região que, até então, vivia mais conectada com rotas comerciais do interior do que com o restante do Brasil.

Paralelamente, a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, iniciada em 1905, abriu caminhos físicos e simbólicos. A ferrovia ligava Bauru (SP) a Corumbá (MS), cortando o leste sul-mato-grossense e facilitando o escoamento da produção agropecuária, além de estimular a vinda de migrantes de diversas partes do país. O município de Três Lagoas, por exemplo, surgiu e cresceu ao redor dos trilhos, tornando-se um dos principais pontos de conexão entre o Sudeste e o Centro-Oeste.

Esse processo de ocupação, marcado por interesses militares e econômicos, teve consequências profundas para os povos originários e as populações locais. O avanço da ferrovia e da estrutura do Estado alterou paisagens, deslocou comunidades e introduziu novas dinâmicas sociais, deixando marcas que ainda hoje fazem parte da história e da identidade do Cerrado sul-mato-grossense.

Transmissão do saber: como a oralidade resiste.

A oralidade é um fio invisível que atravessa gerações nas comunidades do Cerrado. É na conversa entre avós e netos, nos cantos entoados durante as festas e nas preces murmuradas em noites de celebração que o saber tradicional se mantém vivo. Longe dos livros e dos meios formais, esse conhecimento resiste porque é partilhado com afeto e sentido.

Dentro das famílias, a transmissão acontece no cotidiano, muitas vezes sem que se perceba. Uma história contada antes de dormir, um ensinamento passado enquanto se prepara o alimento, uma cantiga que embala o trabalho na roça. São formas de ensinar e aprender que valorizam o tempo, a escuta e a convivência.

As festas populares e os rituais religiosos reforçam esse ciclo. Em celebrações como a Folia de Reis, a Festa do Divino ou os rituais indígenas de cura e passagem, a palavra ganha força coletiva. Cânticos, ladainhas, orações e narrativas sagradas atravessam os espaços e reafirmam a identidade de um povo. Esses encontros comunitários não apenas fortalecem os laços sociais, mas também servem como escolas vivas de cultura.

Desafios na atualidade.

No entanto, a oralidade enfrenta hoje desafios importantes. A urbanização acelerada, a migração dos jovens para os centros urbanos, a perda de línguas indígenas e a influência de padrões culturais externos colocam em risco muitos desses saberes. A fala dos antigos, antes tão valorizada, muitas vezes é vista como ultrapassada ou irrelevante diante das lógicas do mundo moderno.

Mesmo assim, há resistência. Em muitas comunidades, iniciativas de valorização da cultura local, projetos escolares, pesquisas acadêmicas das universidades e ações de jovens comprometidos com sua história têm contribuído para manter viva a tradição oral. A palavra, quando respeitada e ouvida, continua sendo semente. E é por meio dela que o Cerrado segue contando suas histórias, ensinando seus caminhos e afirmando sua existência.

Conclusão.

Os guardadores de palavras são mais do que narradores; são pilares que sustentam a memória, a sabedoria e a identidade das comunidades do Cerrado. Através de suas vozes, ecos do passado continuam a ressoar no presente, carregando ensinamentos, crenças, modos de viver e formas de ver o mundo que resistem mesmo diante das mudanças mais intensas.

Valorizar esses mestres da oralidade é reconhecer a importância de ouvir com atenção, respeito e humildade. Cada história contada, cada reza sussurrada, cada canto repetido carrega não apenas informação, mas sentimento, ritmo e pertencimento. A escuta ativa, nesse contexto, não é passiva; é um ato de acolhimento e também de resistência cultural.

Em tempos de ruído e pressa, é preciso reaprender a ouvir. Ouvir os mais velhos, os anônimos, os que vivem próximos da terra e do silêncio. Porque ouvir é também uma forma de preservar o Cerrado — não apenas sua fauna e flora, mas sua alma, suas palavras, seus caminhos invisíveis de saber. Que possamos, com o coração aberto, seguir ouvindo e guardando o que nos faz continuar.

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O Tempo do Susto: Narrativas de Encontros com o Desconhecido no Cerrado https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/o-tempo-do-susto-narrativas-de-encontros-com-o-desconhecido-no-cerrado/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/o-tempo-do-susto-narrativas-de-encontros-com-o-desconhecido-no-cerrado/#respond Sun, 18 May 2025 23:57:56 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=108 No coração do Cerrado, quando o dia começa a se despedir e o céu se tinge de tons entre o dourado e o roxo, há um momento em que tudo parece se suspender. É nesse intervalo entre a luz e a sombra que começa o chamado tempo do susto. Os antigos dizem que é nessa hora que o mundo visível se abre para os mistérios do invisível, quando o silêncio dos matos guarda sussurros que só quem vive por ali sabe decifrar.

Não é raro ouvir quem diga que viu uma luz rasteira cruzando a estrada de terra, ou que ouviu passos no mato quando não havia ninguém por perto. Tem quem jure de pés juntos que viu uma criança aparecer e sumir sem deixar rastro, ou uma cobra que falava com voz de gente. Esses encontros, muitas vezes contados com olhos arregalados e voz baixa, ganham vida nas rodas de conversa sob o alpendre ou ao redor do fogo.

Esses causos, como são chamados, fazem parte da alma do Cerrado. Não são apenas histórias de medo, mas sim experiências que misturam espanto e respeito pelo desconhecido. Neles, o susto não é um simples pavor. É um estado de atenção profunda, um alerta do corpo e do espírito diante do que foge à lógica e ao costume. Muitas vezes, quem passa por esse tempo do susto sai diferente, como se tivesse cruzado uma fronteira invisível entre o mundo comum e o encantado.

O Cerrado, com sua vastidão, seus sons noturnos e suas veredas escondidas, é um cenário fértil para o mistério. E mesmo em tempos de redes sociais e lanternas de celular, o tempo do susto continua vivo. Ele se atualiza nas novas formas de contar, mas carrega a mesma essência: um convite para lembrar que nem tudo se explica, e que o desconhecido também faz parte do que nos torna humanos.

Contar e ouvir essas histórias é manter acesa a chama da tradição. É reconhecer que, no Cerrado, o medo não é inimigo, mas companheiro das noites escuras e das caminhadas solitárias. É ele quem nos faz escutar melhor o farfalhar das folhas, o pio da coruja, o assovio do vento que passa e deixa no ar a pergunta que nunca se cala: o que será que há por trás da mata fechada?

O que é o Tempo do Susto?

No imaginário popular do Cerrado e de outras regiões interiores do Brasil, o tempo do susto é mais do que um simples momento do dia. Ele carrega um sentido ancestral, moldado por gerações que viveram em contato direto com a natureza e seus mistérios. Trata-se de um período transitório, marcado pelo fim da tarde e o início da noite, quando a luz começa a enfraquecer e as sombras se alongam pelos caminhos, pelos quintais e pelos matos fechados.

Nesse intervalo entre o claro e o escuro, as coisas parecem mudar de forma. A paisagem familiar se transforma. Os sons da natureza ganham outra intensidade, os animais noturnos despertam, e o corpo sente uma tensão inexplicável. É como se o mundo natural se abrisse para outra dimensão, onde as certezas do cotidiano não têm mais tanta força. Esse é o tempo em que os antigos dizem que o invisível circula mais livremente.

O tempo do susto também tem raízes simbólicas ligadas aos ciclos da vida e da morte, ao momento de passagem entre um estado e outro. Assim como o entardecer anuncia o fim do dia, ele também anuncia o começo da noite, com tudo o que ela carrega de encantamento e temor. Por isso, muitas pessoas evitam sair nesse horário ou fazer certos rituais. É comum se ouvir que nesse tempo não se deve chamar pelo nome de quem está longe, nem assobiar, nem cruzar caminhos sem antes fazer o sinal da cruz.

Mais do que superstição, essas práticas revelam um saber tradicional que entende a natureza como viva, sagrada e imprevisível. O tempo do susto não é apenas um espaço de medo, mas de respeito. Ele ensina que há momentos em que o silêncio fala mais alto, e que certos encontros só acontecem quando o mundo está entre a luz e a escuridão.

O Cerrado como território do desconhecido

O Cerrado é uma paisagem que impressiona pelo contraste entre sua aparente simplicidade e a complexidade de seus mistérios. Extenso, seco em boa parte do ano, pontuado por árvores altas e campos abertos, ele guarda uma atmosfera única, onde a presença humana é sempre pequena diante da vastidão da terra. É justamente nesse cenário que o desconhecido encontra espaço para habitar, crescer e se insinuar no cotidiano das pessoas que vivem em contato direto com o mato.

A solidão típica das áreas rurais, onde as casas ficam distantes umas das outras e o silêncio é cortado apenas pelos sons da natureza, faz com que os sentidos fiquem mais atentos. À noite, qualquer estalo no mato pode parecer mais do que um simples animal passando. O vento, ao soprar entre as folhas secas, se transforma em sussurro. A paisagem, que durante o dia parece segura e conhecida, à noite se torna território de dúvida, onde tudo pode acontecer.

Nas crenças populares do Cerrado, o natural e o sobrenatural não são opostos. Eles coexistem. A árvore frondosa pode ser morada de um espírito. O riacho claro pode esconder um encantado. A trilha esquecida pode levar a um encontro com algo que não se explica. Não se trata de folclore distante, mas de uma forma viva de perceber o mundo, passada de geração em geração. Para quem vive nesses territórios, respeitar o desconhecido é uma forma de sabedoria.

O medo, nesse contexto, não é um sentimento inútil. Ele molda comportamentos, ensina limites e fortalece laços. Histórias de assombração, encontros com o invisível ou sinais deixados pelo além são formas de alertar, proteger e também de unir. Ao compartilhar esses relatos, as comunidades constroem uma identidade comum, marcada pela convivência com o imprevisível. O medo, no Cerrado, é também um modo de se pertencer.

Narrativas e causos de susto

No Cerrado, as histórias de susto são tão presentes quanto o cheiro da terra molhada ou o canto da coruja na madrugada. Elas surgem em conversas ao pé do fogão, nas varandas durante o entardecer ou nas longas caminhadas pelas trilhas de terra. Não são apenas invenções para passar o tempo. São memórias vivas, transmitidas com emoção e respeito, muitas vezes acompanhadas por gestos contidos e olhares atentos, como se quem conta ainda sentisse o peso do que viveu.

Há quem diga ter visto uma luz misteriosa cruzando a estrada, pequena como um vaga-lume, mas rápida demais para ser explicada. Outros falam de uma mulher vestida de branco que aparece perto dos riachos e some assim que alguém tenta se aproximar. Tem também o relato antigo de um boi encantado, que surgia apenas nas noites de lua cheia, com olhos de fogo e passo silencioso. Cada comunidade guarda seus próprios causos, e mesmo que alguns mudem com o tempo, todos conservam a essência do mistério.

O modo de contar essas histórias é parte fundamental da experiência. Quem narra muitas vezes o faz com pausa, mudando o tom da voz, observando a reação dos ouvintes. O silêncio entre uma frase e outra ajuda a criar o clima certo. É como se o tempo do susto se repetisse naquele momento, fazendo com que todos ali voltassem a sentir o arrepio na espinha. A oralidade transforma essas narrativas em encontros vivos com o passado e com o desconhecido.

Explicações não faltam. Para uns, é coisa do outro mundo. Para outros, são sinais de que algo aconteceu e ficou mal resolvido. Há ainda quem veja nessas histórias um chamado da própria natureza, querendo lembrar que não se deve atravessar seus caminhos sem respeito. Independentemente da crença, os causos de susto seguem circulando, ganhando força a cada geração.

O valor simbólico do medo

No Cerrado, o medo não é visto apenas como fraqueza ou perturbação. Ele carrega um valor simbólico profundo, entrelaçado à sabedoria popular e à maneira como as pessoas aprendem a se orientar no mundo. Sentir medo diante do desconhecido é sinal de que algo merece atenção. É uma forma de escuta, um alerta do corpo e da alma. Nas comunidades rurais, esse sentimento é muitas vezes encarado como um ensinamento.

Passar por um susto, sobretudo durante o tempo em que o dia se despede, é quase um rito de passagem. Crianças crescem ouvindo os causos contados pelos mais velhos e, mais cedo ou mais tarde, acabam vivendo seus próprios encontros com o inesperado. O medo serve então como guia: mostra o limite entre o que se sabe e o que ainda está por entender. Ensina a caminhar com cuidado, a observar sinais, a respeitar o que não se vê.

Essas experiências, além de pessoais, são coletivas. O medo une. Reúne famílias em volta da mesa ou do fogo, incentiva conversas longas em noites silenciosas, fortalece os laços com o território e com os antepassados. Contar histórias de susto é também um modo de passar adiante conselhos, normas de convivência e alertas de proteção. É a tradição vestida de assombro.

No fundo, essas narrativas mostram que o medo não é apenas paralisia. Ele é também uma porta para o encantamento. Porque no Cerrado, temer não significa fugir, mas reconhecer que há mistérios maiores do que nós. E talvez seja justamente essa reverência que mantém viva a conexão entre as pessoas e a terra que habitam.

Causos de assombração: Aviso de morte

Por Sebastião dos Santos (1938), filho de pai carioca e mãe paulista, ambos de origem negra. Aos 65 anos de idade, mantinha o hábito de se reunir com os vizinhos ferroviários no bairro Feijão Queimado para compartilhar suas histórias.

“Eu tive uma visão. Em 1950, a minha mãe fazia trinta anos que não via a família dela,  fazia trinta anos que não sabia notícias da família dela e ela, pelo um ferroviário lá de Bauru, ela soube da família dela. Então, em 1950, ela foi encontrar com a família. E ela ficou uns quinze dias por lá, passou o Natal e tudo. Quando foi no dia 05 de janeiro de 1950 ela veio a falecer, ela teve um derrame e veio a falecer. E quando ela viajou, ela despediu de mim, né?

-Ah, filho, eu vou e talvez eu não volto, talvez eu vá e não volto mais.

Até despediu e chorando, chorou e eu também chorei muito e isso aí foi já no dia 20 de dezembro. Aí eu fui com a minha irmã pra outra cidade, a minha irmã ia sair e pediu pra mim ficar tomando conta da casa. Aí eu fiquei lá e quando foi no dia 31 de dezembro, nós fomos na casa de uns amigos, jantamos lá e voltamos. Era mais ou menos uma hora da manhã, quando, lá na cidade não tinha luz elétrica, né? Daí meu cunhado falou:

-Ó, tá muito calor, eu vou me deitar no quarto de lá e você deita no quarto nosso, né? E deixa a porta aberta que tá muito calor.

Mas eu tinha medo de dormir com a porta aberta e fechei a porta. E era vitrô, né? E tava uma lua dara e tava clareando dentro do quarto. E o meu cunhado pegou uma lamparina, você sabe o que é uma lamparina, né? De querosene. Ele fumava cigarro de palha e fez um cigarro de palha. E a porta do quarto que eu estava e a porta do quarto que ele estava era no mesmo rumo, só que tinha uma sala que dividia, né, a distância, uns quatro metros mais ou menos.  Aí, eu acabei de me  deitar, a porta eu vi o trinco da porta fazer assim e abrir, a maçaneta, né? A porta abriu, entrou o caixão, aqueles vultos carregando o caixão. E eu via por baixo… E eu tava com a cabeceira da cama pra lá e os pés da cama pro lado da porta. E por baixo do caixão eu via meu cunhado com a lamparina acesa e fumando o cigarro; e aqueles vultos entrando com o caixão dentro do meu quarto. Aí, eu cobri a cabeça… Até uns anos pra cá que eu não cubro mais a cabeça, depois que eu casei com a minha mulher, daí eu larguei de cobrir a cabeça. Quando foi no dia 5 a minha mãe veio a falecer. Ela veio me avisar que ela ia morrer. Então foi uma das coisas que me aconteceu.”

O Tempo do Susto na contemporaneidade

Mesmo em tempos de luz elétrica, redes sociais e tecnologia no bolso, o tempo do susto não perdeu seu lugar. Ele continua habitando as paisagens do Cerrado e se atualiza nas formas de contar e sentir. As histórias que antes circulavam apenas nas rodas de prosa agora encontram espaço em podcasts, vídeos de causos e publicações nas redes, alcançando novos públicos sem perder a essência do mistério.

Nas comunidades rurais, os mais velhos ainda guardam relatos de encontros estranhos e sinais do invisível. E mesmo entre os mais jovens, há quem se emocione ao ouvir uma história bem contada, com aquele silêncio pesado entre uma frase e outra. O arrepio, a dúvida, o encantamento — esses sentimentos atravessam gerações, conectando o passado ao presente.

Convivendo com o invisível.

A professora Eunice Pereira da Silva (1941) conta muitas histórias de família e sobre uma convivência com o invisível, interpretadas como previsões futuras ou mesmo mantendo contato com os que já partiram dessa vida, os entes queridos. Segundo ela, “quando o vô morreu, a gente lá sentado conversando e passava o chinelo dele pra lá e pra cá. E ele andava arrastando o chinelo e a gente ouvia perfeitamente. É… ele passava arrastando o chinelinho, ia na cozinha e voltava. Ninguém via ninguém, só ouvia o chinelo arrastando pra lá e pra cá.”

Hoje, muitos também enxergam essas narrativas como parte do patrimônio imaterial do Cerrado. São vozes que revelam não só o medo, mas também a sensibilidade com que os moradores da região observam o mundo. Em tempos de pressa e excesso de informação, escutar um causo de susto pode ser um convite à escuta mais atenta, à pausa e ao respeito pelas coisas que não têm explicação imediata.

Além disso, há uma redescoberta do valor simbólico dessas histórias. Escritores, pesquisadores e artistas têm voltado os olhos para a oralidade popular como fonte de criação e resistência cultural. O tempo do susto, assim, ganha novos espaços sem deixar de pertencer à terra, ao entardecer, ao sussurro do vento nas veredas. Ele continua sendo uma presença discreta, mas marcante — uma memória viva do Cerrado que ainda sabe se espantar.

Conclusão

O tempo do susto é mais do que uma expressão popular ou um intervalo entre o dia e a noite. É uma chave para compreender como as pessoas do Cerrado se relacionam com o mundo ao redor — com a natureza, com o desconhecido e com aquilo que não se explica, mas se sente. É nesse momento de transição, quando a luz se despede e o silêncio se impõe, que surgem as histórias que atravessam gerações e moldam identidades.

Preservar essas narrativas é também preservar uma forma única de olhar o mundo. O medo, nessas terras, não é apenas temor. É respeito, sabedoria e memória. Cada causo contado à beira do fogo, cada relato sussurrado na varanda, é parte de um saber ancestral que resiste ao tempo.

Em um Cerrado que muda rapidamente, com suas paisagens ameaçadas e seus modos de vida em transformação, escutar e valorizar essas histórias é um gesto de cuidado. É reconhecer que o encantamento ainda existe, e que há sabedoria nos silêncios, nos sustos e nas sombras da mata.

Que cada leitor possa, ao final deste texto, lembrar-se de um causo vivido ou ouvido. E que, ao próximo entardecer, saiba perceber com outros olhos o momento em que o mundo parece parar — quando começa, de novo, o tempo do susto.

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Causos de Assombração: O Imaginário Popular nas Noites Cerradeiras. https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/causos-de-assombracao-o-imaginario-popular-nas-noites-cerradeiras/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/causos-de-assombracao-o-imaginario-popular-nas-noites-cerradeiras/#respond Sun, 18 May 2025 19:07:45 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=104 Quando a noite cai sobre o Cerrado, o silêncio das veredas é entrecortado pelo canto dos bacuraus, o farfalhar das folhas secas e, por vezes, por um assobio que não se sabe de onde vem. É nessas horas que os causos de assombração ganham vida — histórias que arrepiam, divertem e, acima de tudo, revelam a alma do povo cerradeiro. Transmitidos de geração em geração, esses relatos são muito mais do que simples entretenimento: são expressões vivas do imaginário popular, guardiões da memória coletiva e da sabedoria ancestral de um povo profundamente ligado à terra e aos mistérios da noite.

Os causos, com seus personagens assombrosos e ensinamentos velados, funcionam como espelhos da cultura local. Eles carregam os medos, as crenças, os tabus e as esperanças de comunidades que aprenderam a escutar os sinais da natureza e a respeitar os seus ritmos. No Cerrado, contar causos à luz do candeeiro ou ao redor do fogão a lenha é mais do que tradição — é um ritual de pertencimento.

As chamadas “noites cerradeiras”, termo carinhoso e regional que remete às noites densas e silenciosas típicas do Cerrado, são o palco perfeito para o sobrenatural. O céu escuro cravejado de estrelas, o mato fechado que parece esconder segredos, e o isolamento das roças e vilarejos criam o ambiente propício para que o medo e a fantasia se entrelacem. Nessas noites, tudo pode acontecer — e todo mundo tem um causo para contar.

O Que São Causos de Assombração?

No coração do Cerrado, “causo” não é apenas uma história — é uma memória falada, um susto bem contado, uma verdade que mora entre a dúvida e a crença. Diferente de um simples conto, o causo carrega a marca da oralidade e do cotidiano. Ele nasce da experiência ou do “ouvi dizer”, e é sempre contado com aquela entonação que mistura mistério, humor e um ensinamento.

No universo popular, um causo de assombração é uma narrativa que envolve o sobrenatural, o inexplicável, quase sempre ambientado em lugares conhecidos — estradas de terra, matas, rios ou até mesmo na casa ao lado. É aí que ele se distingue de outras formas de narrativa como a lenda ou o mito. Enquanto a lenda tem um caráter coletivo, muitas vezes associada a um fundo histórico ou moral (como a Lenda do Saci ou da Mãe-d’Água), e o mito trata de explicações universais (como os mitos indígenas sobre a criação do mundo), o causo é mais próximo da vivência pessoal ou da experiência de alguém “que viu com esses olhos que a terra há de comer”.

E quem são os guardiões desses causos? São os contadores de histórias: os avós que reúnem os netos ao pé da rede, os tropeiros que percorrem trilhas antigas com a mala cheia de causos, os violeiros que entre uma moda e outra soltam um relato que “ninguém acredita, mas aconteceu”. Essas figuras são fundamentais para manter viva a tradição oral — um patrimônio imaterial que resiste ao tempo e ao esquecimento. Contar um causo é também uma forma de educar, divertir, alertar e, acima de tudo, de compartilhar a sabedoria popular enraizada na terra e no tempo. Assim, os causos de assombração não são apenas histórias de medo. São parte do tecido cultural do Cerrado, moldados pela paisagem, pelo silêncio das noites e pelas vozes de quem sabe que, mesmo sem prova, tem coisa que é melhor não duvidar.

O Cerrado Como Cenário Místico

O Cerrado, com sua vastidão de campos, matas e veredas, transforma-se completamente quando a noite cai. O calor do dia dá lugar ao vento e a escuridão se espalha por entre as árvores retorcidas, criando silhuetas que parecem ganhar vida própria. Nesse ambiente, o silêncio nunca é absoluto. Ele é pontuado por sons misteriosos: o canto do bacurau, o grito agudo da coruja suindara, o estalar de galhos sob o peso de algum bicho que se esconde entre as sombras.

As noites cerradeiras são longas, escuras e profundas. A lua, quando aparece, projeta luzes prateadas que dançam nas copas das árvores e refletem nas águas paradas das lagoas. Quando não há lua, o breu é quase total, e qualquer clarão distante pode ser confundido com uma alma penada ou um sinal vindo do outro mundo. O isolamento das comunidades rurais, onde casas ficam a quilômetros umas das outras, acentua a sensação de mistério. Ali, cada barulho tem peso, cada silêncio tem intenção.

Essa paisagem natural, ao mesmo tempo bela e imponente, oferece o cenário perfeito para o surgimento dos causos de assombração. A escuridão que tudo cobre abre espaço para a imaginação trabalhar, criando histórias que explicam o que os olhos não veem, mas os sentidos percebem. O Cerrado é um território onde a realidade e o fantástico caminham lado a lado, onde o desconhecido espreita entre os galhos secos e as veredas escondidas. Mais do que pano de fundo, ele é parte viva dessas narrativas, moldando o medo, o respeito e a reverência que o povo tem pela terra e pelos mistérios que ela guarda.

É nesse ambiente, onde a natureza fala em códigos antigos, que os causos ganham força. Eles são respostas simbólicas a uma paisagem cheia de enigmas, espelhos do sentimento humano diante do vasto desconhecido. O Cerrado não apenas abriga essas histórias — ele as inspira, as sustenta e as sussurra ao ouvido dos que sabem escutar.

Personagens e Criaturas do Imaginário Cerradeiro

Os causos de assombração que atravessam o Cerrado estão repletos de figuras fantásticas, algumas herdadas de tradições mais amplas, outras moldadas pelas particularidades da vida sertaneja. Esses personagens, que povoam as noites cerradeiras, são parte essencial da cultura oral da região, surgindo sempre que alguém tem algo estranho a contar, um medo a partilhar ou um aviso a deixar.

A mula-sem-cabeça é talvez uma das figuras mais conhecidas do imaginário popular. Dizem que aparece nas madrugadas, galopando em disparada por trilhas e caminhos ermos, com o corpo em chamas e o pescoço cuspindo fogo. É o espírito de uma mulher amaldiçoada por ter se relacionado com um padre. No Cerrado, ela costuma ser ouvida antes de ser vista: um relinchar assustador e o som de cascos no chão seco. Quando passa, deixa um rastro de medo e silêncio.

O lobisomem também tem seu lugar garantido nas rodas de conversa. Segundo os causos, ele é um homem condenado a se transformar em fera nas noites de sexta-feira, especialmente nas luas cheias. Sua presença é anunciada por uivos longos e pegadas fundas que aparecem misteriosamente em terrenos baldios ou perto de currais. As causas da maldição são as mais variadas: o sétimo filho (caso não haja nenhuma filha entre eles) ou o padre que comete o pecado de se casar. Em muitas versões regionais, o lobisomem é alguém conhecido, um vizinho quieto ou um parente que some em certas noites.

Além desses personagens centrais, os causos do Cerrado são ricos em elementos sobrenaturais recorrentes. Luzes misteriosas que dançam sobre o cerrado alto, vozes que chamam pelo nome no meio da mata, assobios que ecoam sem ter origem aparente. Há também histórias sobre galos que cantam à meia-noite, cães que não ladram para certos visitantes, e relógios que param em momentos de susto.

Esses detalhes, muitas vezes simples, são os que mais mexem com o imaginário, pois carregam aquela dúvida que faz a gente olhar para trás ao caminhar por um caminho escuro. Essas criaturas e sinais fazem parte de um sistema simbólico rico, onde o medo e a curiosidade andam de mãos dadas. São presenças que nos lembram de que, no Cerrado, a linha entre o real e o fantástico é tão fina quanto o fio de um assobio perdido no vento.

Funções Sociais dos Causos

Os causos de assombração do Cerrado não existem apenas para assustar ou divertir. Por trás de cada relato fantástico, há camadas de sentido que revelam valores profundamente enraizados na cultura das comunidades cerradeiras. Essas histórias cumprem funções sociais importantes, funcionando como formas de ensinar, proteger e unir as pessoas por meio da palavra contada.

Uma das principais funções dos causos é a transmissão de valores. Ao narrar a história de uma mula-sem-cabeça que aparece para castigar uma mulher que rompeu regras sociais, ou de um lobisomem que sofre por conta de pecados ocultos, os mais velhos passam mensagens sobre os limites que não devem ser ultrapassados. São histórias que ensinam o respeito à natureza, à convivência comunitária, à palavra dada e às tradições. Também é comum que os causos reforcem o respeito aos mais velhos, à sabedoria de quem já viveu muito e conhece os perigos escondidos nas trilhas da vida.

Essas narrativas também exercem um papel de educação informal. Muitas vezes, os causos funcionam como alertas disfarçados de entretenimento. Além disso, os causos fortalecem a coesão comunitária. Reunir-se para ouvir ou contar uma história é um ato de partilha. Seja em volta do fogão a lenha, durante uma roda de tereré ou numa noite de folga na roça, essas histórias criam laços entre as pessoas. Rir de um susto, discutir se o causo é verdade ou invenção, lembrar de alguém que contava do mesmo jeito — tudo isso reforça o sentimento de pertencimento e identidade.

A oralidade, nesse contexto, é um patrimônio coletivo que aproxima gerações e mantém viva a memória cultural da comunidade. Contar causos é, portanto, muito mais do que lembrar do passado. É manter um modo de ver o mundo em que o mistério tem lugar, o respeito é fundamental e a palavra tem poder. No Cerrado, cada história contada é uma semente plantada na alma de quem ouve.

Depoimentos e Causos Reais

Muitos moradores do Cerrado carregam em si lembranças de noites em que algo estranho aconteceu, histórias contadas pelos avós ou experiências que até hoje não sabem explicar direito. São causos vividos, sentidos ou herdados, que ainda circulam nas conversas ao pé da cerca ou nas rodas de prosa depois da janta. A seguir, alguns relatos breves que mostram como o imaginário popular segue vivo na memória de quem habita esse chão antigo.

Leiam agora um causo de assombração contado pelo servidor público Airton Franco de Oliveira (1946), que ouvia muitas histórias contadas por seu pai, que era ferroviário e viajava muito, trazendo essas vivências em sua bagagem.

O FERROVIÁRIO E A LUZ.

“O meu pai, a coragem que ele tinha, uma vez ele contando pra nós, aí ele vivia viajando de trem, assim, aí ele viu uma luz assim, né? Naquela época viajava ele, o maquinista, que era Maria Fumaça, e o ajudante de maquinista, lá pelos anos de 1950 e pouco. Aí essa Maria Fumaça ia uns três ou quatro dias de viagem. E ele vê aquela luz, eu não sei direito o lugar. E um dia o trem parou, o trem parou lá, aí ele falou:

-Rapaz, eu vou lá ver esse troço o quê que é, né?

Aí ele chamou o maquinista e o maquinista disse:

-Vou nada, Romário, vou nada!

O auxiliar de maquinista, foguista:

-Vou nada, vou nada!

Mas aí o meu pai marcou direitinho, né, o lugar onde ele viu a luz e disse:

-Deixa que o dia que eu vir aqui de dia, aí eu vou.

E coincidiu de parar um dia, de dia, parou ali. Parece que era pra ele ir lá, né? E e/e foi. Ele andou, andou, andou, até chegar lá. E aí quando ele chegou lá, tinha uma cruz, aí ele pegou e rezou uma prece, um Pai Nosso, uma Ave Maria. De certo era uma alma penada que precisava de uma prece. Aí nunca mais apareceu, nunca mais apareceu aquela luz. O velho tinha coragem!

Mas é bonita, é bonita, essas histórias desse povo antigo, é bom. Antigamente era sadio, a gente brincava na rua. Num poste ou numa árvore mesmo, de perna lata, esconde-esconde, betiomba, queima, peteca, tudo era brincadeira que a molecada desenvolvia, né? Então, hoje em dia a gente não vê, antigamente tinha a época da gente brincar com birola. A gente falava ‘birola’, outros falavam ‘burita’, hoje é ‘burca’. A gente falava ‘papagaio’, ‘pandorga’, e hoje é ‘pipa’, ‘vamo empiná uma pipa?’ Né? Tudo na época certinho, menina, tinha a época do pião, tinha a época do iô-iô, tinha malha. Tudo tinha o seu tempo certinho. A tv que estragou tudo. Hoje em dia, não, cada  absurdo que você vê.”

A Sobrevivência do Imaginário Popular na Atualidade

Esses relatos, verdadeiros ou não, fazem parte de uma tradição oral rica e pulsante. São fragmentos da memória coletiva que ajudam a manter viva a cultura cerradeira e o jeito especial de ver o mundo através dos mistérios que a natureza guarda.

Em tempos de redes sociais, inteligência artificial e vídeos curtos, pode parecer que os causos de assombração, com seu ritmo pausado e suas raízes na oralidade, estariam fadados ao esquecimento. No entanto, o que se vê é justamente o contrário. Essas histórias, que durante tanto tempo foram passadas de boca em boca em noites de lua ou de fogão aceso, continuam encantando e encontrando novas formas de existir no presente.

O imaginário popular do Cerrado tem mostrado uma incrível capacidade de adaptação. Sarais culturais, encontros de contadores de histórias e festivais de tradições orais têm ganhado espaço em cidades do interior e até em capitais. Em muitas escolas, professores têm resgatado os causos como parte de projetos pedagógicos que aproximam os alunos de suas raízes culturais. A exemplo da Olimpíada de Língua Portuguesa, no âmbito nacional, que por anos tem trabalho o tema “o lugar onde eu vivo”.

O registro é uma forma de proteger esse patrimônio imaterial.

Na internet, os causos também encontraram morada. Podcasts de narrativas folclóricas, canais de vídeo dedicados ao sobrenatural rural e perfis em redes sociais que compartilham trechos de causos têm conquistado público de todas as idades. É curioso perceber que mesmo com tanta tecnologia ao redor, as pessoas continuam fascinadas por uma boa história contada com alma, com pausas, com aquele suspense que prende a respiração.

Registrar e valorizar esses relatos hoje é uma forma de proteger um patrimônio imaterial que corre o risco de se perder com o tempo. Cada causo guardado, seja em áudio, vídeo, texto ou na lembrança de alguém, é uma peça do grande mosaico cultural que forma a identidade do Cerrado. Manter viva essa tradição não é apenas preservar o passado, mas reconhecer que há sabedoria e beleza nas histórias que atravessam gerações.

Concluindo, os causos de assombração são mais do que simples histórias de medo. São espelhos da alma coletiva do Cerrado, caminhos por onde o povo exprime seus medos, sua fé, sua memória e seu modo de ver o mundo. Eles atravessam o tempo como poeira de estrada antiga, carregando valores, ensinamentos e sentimentos que resistem mesmo diante da pressa dos tempos modernos.

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Quando o Rio Fala: Histórias Orais e Vivências em Comunidades Ribeirinhas do Cerrado https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/quando-o-rio-fala-historias-orais-e-vivencias-em-comunidades-ribeirinhas-do-cerrado/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/quando-o-rio-fala-historias-orais-e-vivencias-em-comunidades-ribeirinhas-do-cerrado/#respond Sun, 18 May 2025 03:31:33 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=101 No coração do Cerrado, os rios não são apenas cursos d’água que cortam a paisagem — eles são memória viva, caminhos de histórias e sustento de comunidades inteiras. Nascidos em nascentes cristalinas e moldados pela força do tempo, os rios do Cerrado são guardiões silenciosos de uma sabedoria antiga. São eles que conectam povos, alimentam os campos e embalam as vivências de quem cresceu à sua beira.

Estetítulo: é uma metáfora para o modo como os saberes circulam entre as comunidades ribeirinhas. É o rio que conta, através das vozes de seus moradores, as histórias que não estão nos livros, mas que vivem na fala dos mais velhos, nos causos ao redor do fogo, nas cantigas que atravessam gerações. Escutar o rio é escutar quem vive com ele, numa relação de respeito, troca e pertencimento.

A oralidade, nesse contexto, é um elo fundamental. Por meio dela, os modos de vida, os ensinamentos e até mesmo os avisos da natureza são transmitidos. Cada relato carrega não só informação, mas emoção, memória e identidade. Em tempos de avanço da urbanização e apagamento cultural, dar ouvidos a essas vozes é um ato de resistência e cuidado com o Cerrado e com os povos que o habitam.

O Cerrado e seus rios: veias da vida

O Cerrado, segundo maior bioma do Brasil, é muitas vezes chamado de “berço das águas”. É nele que nascem algumas das mais importantes bacias hidrográficas da América do Sul, como as dos rios São Francisco, Tocantins-Araguaia e Paraná. Suas veredas, córregos e nascentes formam uma rede viva que alimenta ecossistemas inteiros e sustenta milhares de comunidades humanas e não humanas.

Para as populações ribeirinhas do Cerrado, os rios são muito mais do que um recurso natural: são parte do cotidiano, da fé e da identidade. São fonte de água para beber e cozinhar, de peixe para o alimento, de caminhos para o deslocamento e de inspiração para rezas, festas e mitos. Os rios organizam o tempo das plantações, ditam o ritmo das cheias e secas, e moldam uma vida em harmonia com os ciclos da natureza.

No entanto, essas veias da vida estão cada vez mais ameaçadas. O avanço do agronegócio e o desmatamento acelerado colocam em risco as nascentes e a qualidade da água. Barragens, construídas para gerar energia ou armazenar água para grandes monoculturas, interrompem o fluxo natural dos rios e afetam diretamente as comunidades que deles dependem. A mineração, por sua vez, contamina as águas com metais pesados, destruindo o equilíbrio ecológico e colocando em perigo a saúde das pessoas.

Histórias orais: saberes que correm como o rio

Nas margens dos rios do Cerrado, o conhecimento não está apenas nos livros ou nas escolas: ele corre solto na fala dos anciãos, ecoa nas noites de lua cheia e se entrelaça nas redes das varandas. A tradição oral é o fio invisível que costura as vivências das comunidades ribeirinhas, transmitindo valores, ensinamentos e modos de vida que resistem ao tempo.

Contar histórias, por essas bandas, é mais do que entreter — é educar, preservar e fortalecer os laços entre as gerações. São os causos, que misturam realidade e imaginação, como o do bicho que espreita à beira do rio nas noites silenciosas, ou a lenda da mulher encantada que aparece nas águas quando a lua está cheia. Há também os contos que explicam a origem das veredas, as mudanças das estações e os avisos da natureza. Cada história guarda um pedaço da alma do lugar.

Os mais velhos, com sua fala pausada e olhar cheio de lembrança, são os verdadeiros guardiões da memória coletiva. Suas palavras carregam a sabedoria de quem viveu ouvindo e repetindo histórias à beira do fogão ou em longas caminhadas pelos caminhos d’água. Quando falam, não falam só por si, mas por todos os que vieram antes.

Recordar é reviver.

Em tempos de pressa e esquecimento, ouvir essas vozes é como se sentar à beira do rio e entender que há um mundo inteiro correndo ali — silencioso, profundo e cheio de histórias que só sobrevivem quando contadas.

Os mais velhos, com sua fala pausada e olhar cheio de lembrança, são os verdadeiros guardiões da memória coletiva. Suas palavras carregam a sabedoria de quem viveu ouvindo e repetindo histórias à beira do fogão ou em longas caminhadas pelos caminhos d’água. Quando falam, não falam só por si, mas por todos os que vieram antes.

Em tempos de pressa e esquecimento, ouvir essas vozes é como sentar à beira do rio e entender que há um mundo inteiro correndo ali — silencioso, profundo e cheio de histórias que só sobrevivem quando contadas.

Cultura, resistência e identidade

A vida às margens dos rios do Cerrado não é apenas uma questão de geografia — é um modo de ser, de sentir o tempo e de se relacionar com o mundo. Essa identidade, construída no dia a dia da pesca, nas rezas às margens do rio, nos saberes medicinais das plantas da beira, é também uma forma de resistência.

Diversas estratégias de resistência cultural e ambiental vêm sendo adotadas por essas comunidades. Algumas criam associações de moradores para fortalecer a voz coletiva e lutar por seus direitos. Outras se articulam com universidades e ONGs para registrar e divulgar suas histórias, músicas e tradições. Há também iniciativas de jovens ribeirinhos que usam a tecnologia — vídeos, podcasts e redes sociais — para mostrar que suas culturas estão vivas, atuais e merecem ser conhecidas.

Projetos de valorização e registro dessas memórias têm ganhado força. Documentários como O Rio que Nos Leva, pesquisas acadêmicas voltadas à etnografia das comunidades do Cerrado e arquivos sonoros de histórias orais são algumas das formas encontradas para eternizar essas vivências.

A cultura ribeirinha do Cerrado, longe de ser algo do passado, é presença viva, dinâmica e profundamente resistente. Valorizar essas vozes é reconhecer que, nas margens dos rios, pulsa uma força ancestral que ainda tem muito a ensinar sobre pertencimento, equilíbrio e cuidado com o mundo.

Quando o rio deixa de falar: os riscos do silêncio

Há um silêncio que dói mais do que o som da seca ou o estalo das árvores caindo. É o silêncio que se instala quando uma comunidade ribeirinha é afastada de seu território, quando a voz dos mais velhos se cala por falta de quem escute, quando as águas já não têm mais quem as leia como um livro aberto.

A oralidade, que antes fluía livre como as águas, começa a se apagar. Sem a roda de conversa no quintal, sem a beira do rio como cenário, as histórias não encontram espaço para continuar. O perigo do esquecimento cultural não está apenas na ausência de registros, mas na desconexão entre as novas gerações e as raízes que sustentam sua identidade.

Preservar os rios e quem vive com eles é garantir que essas vozes continuem ecoando. É evitar que o silêncio tome o lugar das histórias, que a pressa apague o tempo das tradições e que a paisagem se transforme num espaço sem memória.

Os causos dos rios do Cerrado central.

Valorizar a cultura ribeirinha é mais do que um ato de preservação: é uma escolha por manter vivas as vozes que carregam memórias e modos de vida únicos, que resistem mesmo diante das transformações do tempo e do território. Preservar os rios do Cerrado é garantir que essas histórias continuem correndo, como o próprio fluxo das águas, conectando passado, presente e futuro.

Localização da Vila de Pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná

A vila de pescadores de Jupiá está localizada no município de Três Lagoas, no estado de Mato Grosso do Sul, na região Sudeste do bioma Cerrado. Situada às margens do majestoso rio Paraná, essa comunidade tradicional mantém viva uma relação íntima com as águas que lhe dão sustento, identidade e direção.

Jupiá fica próxima ao ponto de encontro entre o rio Paraná e o rio Sucuriú, formando um cenário de grande beleza natural e importância estratégica para a pesca artesanal. A vila está inserida em uma área que, apesar das transformações ocorridas ao longo das últimas décadas — como a construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Jupiá — ainda guarda traços fortes da cultura ribeirinha.

De fácil acesso a partir da cidade de Três Lagoas, Jupiá permanece como um refúgio onde o tempo parece correr no ritmo das águas. Suas ruas simples, casas voltadas para o rio e o vai e vem de canoas e barcos de pesca formam um retrato vivo de uma tradição que resiste.

Mais do que um ponto no mapa, a vila de Jupiá é um território de memória, onde o saber dos pescadores se mistura às histórias do rio. Um lugar onde se pode ouvir, ainda hoje, o sussurro das águas e as vozes antigas que seguem contando — e vivendo — as histórias do Cerrado.

Palavras do pescador Chicão, da Vila dos Pescadores de Jupiá.

Segundo Chicão, pescador da Vila de Pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná, “nessa bacia do Paraná, o peixe maior que nós temos é o jaú, que já atinge os cento e vinte quilos aqui. De tamanho, dos maiores que nós temos nessa bacia é o jaú e depois o pintado. Agora, esses jaús gigantes, a gente não viu quantidades grandes não. Lá de vez em quando localiza um.

-Ah, o fulano pegou um jauzão!

A gente vai lá ver, tira foto, é grande mesmo… Antigamente dava mais peixe do que hoje. Quando o rio era natural mesmo. Hoje não, hoje tem muitas barragens, nosso rio está parecendo escada: se você pegar de Itaipu e vier subindo, aí Primavera, Jupiá, Ilha Solteira e Água Vermelha e São Simão, e vai indo, o rio é escada. Tudo represado. Você vê que o nosso rio não é mais natural, ele ficou sendo artificial.”

Para concluir, a seguir, vamos conhecer um causo narrado por Jurandir Queiroz (1938), militar reformado, de origens negras, seu pai trabalhou em cafezais e depois trabalhou para a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, de maneira que morou em várias localidades e era exímio contador de histórias.

O Jaú que Comia Gente.

Aqui na região se fala muito de aparição do Nego D’água, mas eu que sou nascido por aqui às margens do rio Paraná nunca vi. Na minha época, o que existiu era o Jaú que Comia Gente. Jaú é um peixe, enorme. Nós temos um causo aqui, do genro do coronel João, dono do Porto. A sua filha Mariinha mulata perdeu o marido quando atravessava o braço do rio Paraná. Sentindo falta da canoa, ele nadou e foi buscar a canoa na outra margem, o rio estreito… Chegando na outra margem, ele desapareceu porque um jaú gigante tinha devorado ele. O coronel João colocou a peonada toda pra fazer uma varredura no fundo do rio, mas não achou o corpo do genro. Isso aconteceu na década de 1920, o corpo desapareceu, foi devorado pelo jaú. O jaú que comia gente tinha uns cento e oitenta quilos. Uma vez um japonês conseguiu trazer um jaú gigante num caminhão, deitado de fora a fora do caminhão, gigante, mais que um boi, a cara mais feia do mundo e os cabelos debaixo da asa. Esse eu vi, o jaú que comia gente.”

Que este texto seja um convite a ouvir com atenção. A proteger não só as águas que vemos, mas também as histórias que elas carregam. Porque, no fundo, quando cuidamos dos rios, estamos cuidando de nós mesmos.

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Animais silvestres atropelados em estradas das regiões de Cerrado: um grito de alerta pela vida https://encantosdocerrado.com/2025/05/12/animais-silvestres-atropelados-em-estradas-das-regioes-de-cerrado-um-grito-de-alerta-pela-vida/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/12/animais-silvestres-atropelados-em-estradas-das-regioes-de-cerrado-um-grito-de-alerta-pela-vida/#respond Mon, 12 May 2025 23:53:13 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=82 O Cerrado brasileiro, muitas vezes chamado de berço das águas, é também um dos biomas mais ricos em biodiversidade do planeta. Lar de milhares de espécies de plantas e animais — muitas delas exclusivas da região —, o Cerrado abriga uma fauna impressionante. Contudo, atropelamento de animais silvestres nas estradas que cortam o Cerrado é um grave problema ambiental e social. A expansão da malha viária na região tem aumentado a mortalidade de espécies, muitas delas endêmicas ou ameaçadas de extinção.

É muito comum ver animais silvestres atropelados às margens das rodovias.

Com a expansão acelerada das fronteiras agrícolas e o crescimento da malha viária nas últimas décadas, esse ecossistema tem sofrido pressões todos os dias. Uma das mais alarmantes é o número crescente de animais silvestres atropelados em estradas das regiões de Cerrado. Rodovias cortam áreas naturais sem planejamento adequado, transformando-se em verdadeiras armadilhas para a fauna local, que tenta atravessar em busca de alimento, água ou abrigo.

Estudos apontam que o Brasil registra mais de 400 milhões de atropelamentos de animais silvestres por ano, o que representa uma média assustadora de 15 animais mortos por segundo. No Cerrado, onde se concentram várias rotas de escoamento da produção agrícola, o número de ocorrências é ainda mais elevado. Espécies ameaçadas de extinção, como o lobo-guará e o tamanduá-bandeira, estão entre as mais atingidas. Além do impacto ecológico, esses acidentes também geram custos sociais, ambientais e econômicos significativos.

Motoristas e animais em risco todos os dias.

Além das perdas irreparáveis para a vida animal, os atropelamentos também representam um risco real à segurança de motoristas e passageiros. A colisão com animais de grande porte, como antas e lobos, pode causar acidentes graves e fatais. Assim, discutir esse tema é fundamental não apenas para a conservação ambiental, mas também para a proteção de vidas humanas nas estradas que cruzam o coração do Brasil.

🐾 Por que os animais silvestres são atropelados nas estradas?

O número alarmante de animais silvestres atropelados em estradas das regiões de Cerrado está diretamente ligado a uma combinação de fatores ambientais, estruturais e comportamentais que afetam tanto a fauna quanto o modo como interagimos com o ambiente natural.

Um dos principais motivos é a fragmentação do habitat natural. Com o avanço da agropecuária, do desmatamento e da urbanização, o Cerrado tem sido dividido em pedaços cada vez menores e isolados. Animais que antes se deslocavam livremente por vastas áreas agora encontram barreiras como cercas, plantações e, principalmente, rodovias. Para continuar seus ciclos de vida — seja em busca de alimento, água ou parceiros reprodutivos — eles precisam atravessar essas estradas, muitas vezes colocando-se em risco.

O país ignora a importância de infraestruturas ecológicas – não são gastos, mas sim investimentos pela vida.

Outro fator crítico é a construção de rodovias sem infraestrutura ecológica adequada. Poucas estradas contam com passagens de fauna (túneis ou viadutos verdes), cercas direcionadoras ou sinalização efetiva em áreas de travessia. Essa ausência de planejamento ambiental faz com que as vias se tornem armadilhas letais para diversas espécies, especialmente as de grande porte.

Além disso, é importante considerar o comportamento natural dos animais. Muitas espécies do Cerrado têm hábitos noturnos ou crepusculares, períodos em que a visibilidade é reduzida para os motoristas. Outros animais seguem rotas migratórias ou precisam percorrer longas distâncias em busca de recursos, atravessando as estradas por instinto, sem compreender o perigo que elas representam.

Direção defensiva e gentileza nas estradas. Por que não?

Por fim, há também a falta de conscientização dos motoristas, que muitas vezes trafegam em alta velocidade mesmo em áreas de preservação ou com sinalização indicando presença de fauna. A pressa, o desconhecimento e a desatenção contribuem para o agravamento do problema, reforçando a necessidade de campanhas educativas e de uma mudança de postura por parte da sociedade.

🐾 Espécies mais afetadas pelo problema

O impacto dos atropelamentos nas estradas do Cerrado vai além da perda de indivíduos isolados: ele ameaça a sobrevivência de espécies inteiras, algumas das quais já se encontram em situação de vulnerabilidade ou em risco de extinção. A seguir, conheça algumas das espécies mais afetadas por essa realidade trágica:


🦉 Seriema (Cariama cristata)

Ave típica do Cerrado, de pernas longas e bico curvado, facilmente avistada às margens das estradas. Por caminhar mais do que voar, torna-se presa fácil para veículos em alta velocidade.
Status de conservação: Pouco preocupante, mas muito impactada por atropelamentos.


🐜 Tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla)

Com sua longa cauda peluda e focinho alongado, é um dos símbolos do Cerrado. Tem visão limitada e movimenta-se lentamente, o que o torna vulnerável em cruzamentos de rodovias.
Status de conservação: Vulnerável à extinção.


🐺 Lobo-guará (Chrysocyon brachyurus)

O maior canídeo da América do Sul, reconhecido pelas pernas longas e pelagem avermelhada. Costuma percorrer grandes áreas para se alimentar, muitas vezes cruzando estradas perigosas.
Status de conservação: Vulnerável à extinção.


🐘 Anta (Tapirus terrestris)

Maior mamífero terrestre da América do Sul, pode pesar até 300 kg. Seu grande porte faz com que acidentes envolvendo antas sejam especialmente perigosos também para os motoristas.
Status de conservação: Vulnerável à extinção.


🐢 Tatu-canastra (Priodontes maximus)

Espécie rara e de hábitos noturnos, é o maior tatu do mundo. Vive em tocas e sai em busca de alimento à noite, o que aumenta os riscos nas estradas mal iluminadas.
Status de conservação: Vulnerável à extinção.


🐆 Jaguatirica (Leopardus pardalis)

Felino ágil e solitário, com pelagem rajada que lembra uma onça-pintada em miniatura. Apesar de ser um caçador habilidoso, não é páreo para a velocidade dos veículos.
Status de conservação: Quase ameaçada.


Essas espécies representam apenas uma fração da rica fauna do Cerrado. A morte de cada indivíduo nas estradas não é apenas uma perda biológica, mas um enfraquecimento da teia ecológica que sustenta esse bioma único. Conhecer e reconhecer essas espécies é um passo fundamental para protegê-las.

🚧 4. Principais rodovias com alto índice de atropelamentos

As estradas que cruzam o Cerrado têm se tornado corredores de risco para a fauna silvestre. O traçado de muitas dessas vias ignora rotas naturais de deslocamento dos animais, além de carecer de estruturas que mitiguem os impactos da circulação de veículos em áreas ecologicamente sensíveis. Os casos de animais silvestres atropelados em estradas das regiões de Cerrado são especialmente concentrados em algumas rodovias federais estratégicas para o transporte de cargas e passageiros.

BR-262 (Minas Gerais – Mato Grosso do Sul)

Conhecida por atravessar áreas de Cerrado e Pantanal, a BR-262 é um dos principais corredores logísticos do Brasil. É também uma das rodovias com maior número de registros de atropelamentos de fauna silvestre. Em alguns trechos entre Araxá (MG) e Corumbá (MS), pesquisadores identificaram mais de 600 atropelamentos por mês, com destaque para espécies como tamanduás-bandeira, antas e capivaras.

BR-040 (Brasília – Juiz de Fora)

Ligando o Distrito Federal ao sudeste do país, essa rodovia passa por regiões críticas do Cerrado. Devido ao alto fluxo de veículos e à proximidade com áreas de reserva, muitos animais tentam cruzar a estrada. Estudos apontam que, apenas no trecho entre Paracatu e Cristalina, centenas de atropelamentos ocorrem anualmente, atingindo principalmente lobos-guará, seriemas e jaguatiricas.

BR-153 (Transbrasiliana)

Chamada de “espinha dorsal do Brasil”, essa rodovia corta o Cerrado de norte a sul, passando por Goiás, Tocantins e outros estados. É um dos pontos mais críticos para a fauna silvestre devido à sua extensão e falta de passagens de fauna. Relatórios de ONGs ambientalistas indicam uma média de 10 atropelamentos por quilômetro por ano em certos trechos. O lobo-guará e diversas espécies de aves são as mais atingidas.

Mapeamento dos trechos críticos

Embora existam esforços pontuais de monitoramento, o Brasil ainda carece de um sistema nacional consolidado para registrar atropelamentos de fauna. Iniciativas como o Sistema Urubu, um aplicativo colaborativo de registro de animais mortos nas estradas, têm ajudado a mapear os pontos mais perigosos. Segundo dados da plataforma, as maiores concentrações de incidentes no Cerrado coincidem com áreas próximas a parques nacionais e corredores ecológicos mal protegidos.


Rodovias são importantes para o desenvolvimento, mas também devem ser planejadas com responsabilidade ambiental. Identificar esses pontos críticos é o primeiro passo para implementar soluções que protejam a vida — tanto humana quanto animal.

⚠ Impactos dos atropelamentos

O crescente número de animais silvestres atropelados em estradas das regiões de Cerrado não representa apenas uma tragédia silenciosa para a fauna. Os impactos se estendem para além das margens das rodovias, afetando a biodiversidade, a segurança dos motoristas e o equilíbrio ecológico de todo o bioma.

🐾 Consequências para a fauna

O atropelamento de animais silvestres leva diretamente à redução populacional de espécies nativas, algumas já ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira e o lobo-guará. Cada animal morto representa uma perda genética, uma quebra na cadeia reprodutiva e um retrocesso para os esforços de conservação.

Essa mortalidade constante também ameaça a biodiversidade do Cerrado, um dos biomas mais ricos e diversos do mundo. Muitas espécies são endêmicas — ou seja, só existem nessa região — e o desaparecimento de uma delas pode desencadear efeitos em cascata, afetando outras formas de vida que dependem dela para sobreviver.

🚗 Consequências para os humanos

Do ponto de vista humano, os atropelamentos também trazem riscos significativos. Colisões com animais de grande porte, como antas e veados, são capazes de provocar acidentes graves, resultando em ferimentos, perda de vidas e danos materiais expressivos.

Além disso, há danos econômicos e emocionais. Muitos motoristas ficam traumatizados após acidentes com animais, especialmente quando há vítimas fatais ou lesões sérias. Empresas e órgãos públicos arcam com custos relacionados à reparação de veículos, remoção de carcaças, atendimento médico e manutenção das vias.

🌱 Desequilíbrio ecológico

Por fim, os atropelamentos em massa contribuem para o desequilíbrio ecológico. Animais como lobos-guará e seriemas têm papel importante na dispersão de sementes, ajudando na regeneração da vegetação nativa. Outros, como os tamanduás e tatus, controlam populações de insetos e ajudam a manter a saúde do solo. Quando essas espécies desaparecem ou diminuem drasticamente, todo o ecossistema sofre.


Portanto, os atropelamentos vão muito além de um problema isolado de trânsito: são um reflexo de como a convivência entre desenvolvimento e natureza precisa ser urgentemente revista e equilibrada.

🌱 Iniciativas de conservação e prevenção

Diante do crescente número de animais silvestres atropelados em estradas das regiões de Cerrado, diversas iniciativas têm surgido com o objetivo de reduzir esse impacto e promover a convivência mais harmoniosa entre o tráfego rodoviário e a fauna nativa.

Passagens de fauna e cercas direcionadoras

Uma das estratégias mais eficazes é a construção de passagens de fauna — túneis subterrâneos ou viadutos verdes que permitem que os animais atravessem as rodovias com segurança. Essas estruturas, quando combinadas com cercas direcionadoras, guiam os animais até o ponto seguro de travessia, reduzindo significativamente os atropelamentos.

Alguns trechos da BR-262 e da BR-040 já contam com essas soluções, embora ainda em número insuficiente frente à extensão das estradas e à quantidade de áreas críticas.

📱 Tecnologia e ciência cidadã

Projetos como o Sistema Urubu, criado pelo ecólogo Alex Bager, têm desempenhado papel fundamental no mapeamento de atropelamentos em todo o país. A plataforma permite que motoristas e cidadãos comuniquem o local de atropelamentos por meio de um aplicativo, criando um banco de dados colaborativo essencial para o planejamento de ações de mitigação.

🎓 Educação ambiental e campanhas de conscientização

Outra frente importante de ação está na educação ambiental. Campanhas em escolas, postos de gasolina e redes sociais ajudam a alertar motoristas sobre os riscos de alta velocidade em áreas naturais, incentivando a direção responsável e atenta. Sinalizações específicas para áreas de travessia de fauna também são instrumentos eficazes, quando bem posicionadas e mantidas.

Parcerias institucionais e políticas públicas

A atuação de ONGs, universidades, órgãos ambientais e concessionárias de rodovias tem sido decisiva na implementação de medidas preventivas. No entanto, ainda é urgente ampliar as políticas públicas voltadas à conservação da fauna atropelada, incluindo leis que exijam estudos de impacto ambiental mais rígidos e a construção obrigatória de passagens de fauna em novos empreendimentos rodoviários.


As soluções existem, mas precisam de vontade política, recursos e engajamento coletivo para se tornarem realidade em todo o Cerrado. Proteger os animais silvestres é também proteger o futuro do nosso bioma.

🌍 Conclusão

VIDAS IMPORTAM! SEJAM ELAS HUMANAS OU ANIMAIS!

O Cerrado, com sua biodiversidade única e vital para o equilíbrio ecológico do Brasil, enfrenta desafios urgentes para sua preservação, e os atropelamentos de animais silvestres nas estradas são um reflexo da convivência tensa entre o crescimento urbano e a natureza. As perdas que esses atropelamentos causam são profundas — tanto para as espécies afetadas quanto para a saúde do bioma como um todo.

A boa notícia é que ações de conservação e prevenção já estão em andamento, e com mais investimento, inovação e conscientização, podemos reverter parte dos danos. As passagens de fauna, o uso de tecnologias de monitoramento e as campanhas educativas são apenas algumas das ferramentas que podem reduzir os atropelamentos e promover a segurança tanto para a fauna quanto para os motoristas.

No entanto, esse é um esforço coletivo. Cada um de nós pode contribuir para a preservação do Cerrado, seja através de uma direção mais consciente, da participação em projetos de monitoramento de fauna ou mesmo apoiando políticas públicas que priorizem a integração da natureza com a infraestrutura rodoviária. É preciso agir agora para garantir que as futuras gerações possam continuar a admirar a riqueza desse bioma e de suas espécies emblemáticas.

Junte-se a essa causa! Informe-se sobre as iniciativas locais, apoie projetos de conservação e ajude a espalhar a conscientização sobre a importância de proteger a fauna do Cerrado. É também urgente que os governantes e concessionárias das estradas se atentem às necessidades de coexistir da melhor forma, perante a natureza. Por exemplo, uma simples cerca à beira das estradas, já protegeria melhor os animais e também os motoristas e passageiros. Cada pequena ação pode fazer a diferença.

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