literatura oral – encantosdocerrado.com https://encantosdocerrado.com Wed, 21 May 2025 03:27:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.1 https://encantosdocerrado.com/wp-content/uploads/2025/05/cropped-EC-32x32.png literatura oral – encantosdocerrado.com https://encantosdocerrado.com 32 32 244143307 Contos de Caminho: Histórias Narradas nas Andanças entre Vilas e Povoados https://encantosdocerrado.com/2025/05/21/contos-de-caminho-historias-narradas-nas-andancas-entre-vilas-e-povoados/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/21/contos-de-caminho-historias-narradas-nas-andancas-entre-vilas-e-povoados/#respond Wed, 21 May 2025 03:27:22 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=116 Nas vastas paisagens do Cerrado, entre trilhas de terra vermelha, veredas sombreadas por vilas de pescadores e povoados de poucas casas e muitos causos, floresce uma tradição que resiste ao tempo: a arte de contar histórias. Essas narrativas, passadas de boca em boca, carregam não apenas palavras, mas memórias, saberes e modos de viver que se entrelaçam com a própria identidade das comunidades que habitam essa imensidão brasileira.

Contos de Caminho é como chamamos as histórias que nascem e se espalham durante as andanças entre vilas e lugarejos. São relatos vividos, reinventados ou apenas sonhados, contados por quem segue estrada afora, seja a pé, a cavalo ou em carro de boi. Essas histórias se movem junto com seus narradores e ganham novos contornos a cada parada, mantendo viva uma cultura que sobrevive na oralidade e no encontro.

Este texto é um convite para que você caminhe conosco por essas trilhas de palavra, escute o eco dos antigos contadores e descubra como cada canto do Cerrado guarda um conto à espera de ser ouvido. Vamos juntos seguir os rastros das narrativas que unem pessoas, lugares e tempos diferentes por meio da força da voz e da imaginação.

O Cerrado, com sua imensidão de campos, chapadas e matas fechadas, é mais que um bioma de riquezas naturais — é um território onde as histórias se movem junto com as pessoas. Entre vilas afastadas e pequenos povoados, os caminhos de terra batida, as veredas silenciosas e as trilhas que serpenteiam o mato formam verdadeiras rotas narrativas, por onde circulam não apenas viajantes, mas também causos, lendas e memórias.

O Cerrado Como Cenário de Narrativas Itinerantes.

Esses trajetos, muitas vezes percorridos a pé ou a cavalo, conectam comunidades e servem de palco para o encontro entre diferentes modos de viver. Nas paradas sob a sombra de uma árvore ou ao redor do fogo em um rancho improvisado, as histórias ganham vida e se multiplicam. Cada curva da estrada guarda lembranças de encontros, descobertas e experiências que se transformam em palavras contadas com emoção, exagero ou sabedoria.

A importância das estradas como rotas de histórias.

O andarilho solitário, o tropeiro conduzindo sua tropa ou o romeiro em sua fé são figuras centrais nesse movimento contínuo de narrativas. Eles não apenas levam mercadorias ou intenções — carregam também vozes, sotaques e episódios vividos ou ouvidos. São transmissores da tradição oral, mensageiros de um tempo em que a palavra dita era o principal elo entre o passado e o presente.

Nesse cenário moldado pela natureza e pela experiência humana, o Cerrado se afirma como uma terra onde as histórias não ficam presas às páginas, mas seguem seu curso pelas trilhas abertas no chão e na memória coletiva.

A presença de autoridades ancestrais da fauna cerradeira.

É nesses trechos mais isolados que os perigos espreitam, não apenas nos desvios do terreno ou nas mudanças bruscas de tempo, mas também na presença de animais que habitam esses domínios com autoridade ancestral.

Entre os mais temidos estão as cobras, muitas vezes camufladas entre folhas secas e galhos caídos. Jararacas, cascavéis e sucuris são presenças reais nas trilhas do Cerrado, e seus encontros com os viajantes costumam render histórias de susto, astúcia ou sobrevivência. O silêncio da mata é quebrado apenas pelo som seco de um chocalho ou pelo farfalhar repentino de algo que se arrasta. Para os mais antigos, esses encontros não são apenas acidentes — são avisos da mata, sinais de que é preciso andar com olhos atentos e passos respeitosos.

Mais adiante, nos sertões profundos e nas bordas de rios sombreados, a figura imponente da onça marca presença como um símbolo máximo da força e do mistério do Cerrado. Seja a onça parda, com seu jeito furtivo e quase invisível, seja a onça pintada, majestosa e rara, ambas despertam fascínio e temor. Dizem que quando a onça cruza o caminho, o silêncio se impõe como um manto. Poucos a veem, mas muitos sentem quando ela está por perto — é o tipo de presença que transforma qualquer caminho em reverência.

Esses perigos naturais, longe de afastarem os contadores de histórias, servem como combustível para os relatos mais marcantes. São eles que temperam os contos com suspense, coragem e mistério, fazendo das trilhas do Cerrado não apenas rotas de passagem, mas caminhos cheios de narrativas vivas, nascidas do encontro entre o homem e a força indomável da natureza.

A relevância dos contadores de histórias

Nas paisagens vastas do Cerrado, onde a modernidade chega devagar e o tempo parece ter outro ritmo, existem guardiões de um saber antigo que não se aprende nos livros. São os narradores populares — violeiros, romeiros, anciãos, vaqueiros, caçadores e pescadores — figuras que mantêm viva a tradição oral nas comunidades espalhadas entre serras, veredas e povoados.

Esses contadores de histórias não usam microfone nem papel. Suas vozes ecoam nas rodas de fogueira, nas festas de santo, nas paradas à beira da estrada e nas noites longas depois da lida. Com olhos brilhando de memória e gestos cheios de intenção, eles conduzem os ouvintes por histórias que misturam lembrança e invenção, criando um espaço onde a realidade se encontra com o encantamento.

O violeiro canta causos entre uma moda e outra, entrelaçando cordas e palavras com a mesma destreza. Já o romeiro, em suas andanças de fé, carrega não só promessas, mas também histórias colhidas em muitos caminhos. Os anciãos, com o peso dos anos e a leveza da sabedoria, compartilham experiências que ultrapassam o indivíduo e pertencem à coletividade.

A prática da contação de histórias nas rodas de fogueira, festas e paradas de viagem.

Entre esses guardiões, os vaqueiros se destacam com seus relatos de lida brava no mato, encontros com boi bravo ou com seres misteriosos nas campinas. Os caçadores, por sua vez, narram passagens que oscilam entre o real e o lendário — encontros com onças, visagens ou barulhos inexplicáveis vindos do mato. Já os pescadores transformam suas jornadas pelos rios em epopeias aquáticas, onde peixes gigantes, redemoinhos traiçoeiros e luzes estranhas sempre têm um papel.

Em cada fala, há mais do que entretenimento: há memória, cultura e identidade. Os contos carregam conselhos, ensinamentos e formas de ver o mundo moldadas pelo Cerrado e por seus modos de vida. Escutá-los é entrar em um território onde o tempo se dobra, e o que parece invenção carrega, no fundo, uma verdade mais profunda sobre quem somos e de onde viemos.

Tipos de Contos Encontrados no Caminho

Ao longo das estradas de chão e das trilhas escondidas do Cerrado, os contos que se espalham entre uma vila e outra formam um mosaico de emoções, mistérios e sabedoria popular. Cada parada na sombra de um jatobá, cada pouso à beira de um riacho, é uma oportunidade para que alguém conte — ou aumente — uma história que ouviu, viveu ou simplesmente imaginou. Esses relatos, carregados de elementos do cotidiano e da fantasia, revelam muito sobre o espírito do povo do campo.

Causos de assombração.

Os causos de assombração são talvez os mais lembrados nas rodas noturnas, quando o fogo crepita e a mata ao redor parece escutar em silêncio. Neles, aparecem visagens, vultos na estrada, crianças encantadas e entidades que surgem do nada para testar a coragem dos viajantes. É comum ouvir histórias de quem cruzou com a Mula-sem-cabeça ou com a velha do saco, ou ainda relatos sobre almas penadas vagando por antigos cemitérios de beira de estrada.

Contos de encantamento.

Há também os contos de encantamento, em que a natureza se transforma em palco do inexplicável. Árvores que falam, fontes que curam, pedras que se movem à noite. São narrativas que nascem do espanto diante do desconhecido e que alimentam o imaginário coletivo com beleza e mistério.

Histórias de amor e bravura.

Não faltam, porém, histórias de amor e bravura. São relatos de encontros improváveis, de paixões que desafiaram distâncias e preconceitos, ou de heróis anônimos que enfrentaram seca, bicho brabo ou até injustiça para proteger o que amavam. Esses contos carregam emoção e servem de inspiração, especialmente quando narram gestos simples que se tornam grandiosos pela coragem envolvida.

Lendas locais e personagens folclóricos.

Entre uma história e outra, surgem também as lendas locais e figuras do folclore do Cerrado. Animais encantados, guardiões de veredas, curandeiros com poderes misteriosos. Cada comunidade tem seus personagens únicos, cujas façanhas se espalham de boca em boca, atravessando gerações.

Causos de engano

E como não poderia faltar, os casos engraçados completam o repertório. São histórias de gente atrapalhada, de confusões em festas, de mentiras desmascaradas e situações inusitadas que arrancam risos e, muitas vezes, carregam lições de vida. São esses contos, recheados de humor e sabedoria, que mantêm viva a alegria e a leveza, mesmo diante das dificuldades do dia a dia.

Esses diferentes tipos de narrativa fazem do caminho um espaço de aprendizado e encantamento. Cada conto compartilhado é uma semente lançada no vento, pronta para germinar na memória de quem escuta e seguir adiante, bordando o Cerrado com histórias que nunca morrem.

A Tradição Oral e sua Importância Cultural

Nas regiões do Cerrado, onde muitas comunidades ainda vivem em sintonia com os ciclos da terra e o ritmo das estações, a palavra falada continua sendo um dos principais instrumentos de transmissão de conhecimento. A tradição oral é um laço invisível, mas poderoso, que une gerações, sustenta a identidade coletiva e fortalece o sentimento de pertencimento.

Vozes que Transmitem Raízes

Os contos que circulam entre vilas e povoados não são apenas entretenimento. Eles carregam marcas profundas da história local, revelam os valores de um povo e resgatam memórias que, de outro modo, poderiam se perder. Ao ouvir um causo contado por um ancião, uma criança aprende mais do que um enredo: ela se conecta com a vivência de sua comunidade, com seus medos e esperanças, com o jeito próprio de enxergar o mundo.

Esse processo é essencial para manter viva a identidade cultural. A oralidade permite que saberes sejam passados de forma natural, muitas vezes durante o trabalho no roçado, à beira do fogão a lenha ou nas conversas ao entardecer. Cada palavra dita tem peso, ritmo e cor — e vai moldando a maneira como as pessoas pensam, se relacionam e constroem sua história.

A Força da Memória e do Pertencimento

Na tradição oral, memória não é só lembrança: é construção ativa. Quando alguém conta um caso, revive um fato, reinterpreta um sentimento. Ao escutar, o outro também participa desse processo, recriando a história dentro de si. Assim, contar e ouvir se tornam atos de pertencimento. Quem narra se afirma como parte de uma cultura, e quem escuta se reconhece nela.

Esse vínculo fortalece a coesão social. As histórias ajudam a explicar o mundo, reforçam normas de convivência, ensinam como agir diante do desconhecido. São como bússolas simbólicas, passadas de mão em mão, que orientam as comunidades em seu caminho coletivo.

Narrativas que Inspiram Linguagem, Música e Festa

A influência dos contos orais vai além da fala cotidiana. Eles moldam expressões regionais, ditados populares e modos de se comunicar. Muitos trejeitos do linguajar do Cerrado têm origem nas histórias contadas à beira do fogo ou nos causos exagerados que animam encontros de família.

Na música, essa presença também é marcante. Modas de viola, cantigas de roda, benditos e emboladas muitas vezes se inspiram em personagens e situações dessas narrativas orais. Um conto de amor vira canção. Um causo de assombração se transforma em lamento ou desafio cantado. Os músicos populares, com suas violas e rabecas, são também guardiões dessas histórias transformadas em som.

E nas festas populares, a tradição oral ganha corpo e cor. Folias, reisados, congadas e festejos religiosos são momentos em que as histórias saem da boca e tomam as ruas, os terreiros, as capelas. Ali, o mito se mistura à dança, o sagrado se une ao riso, e tudo aquilo que foi contado ao pé do ouvido se torna celebração viva da cultura.

No Cerrado, a oralidade é mais do que forma de contar: é forma de existir. É por meio dela que o povo segue se reconhecendo, se reinventando e resistindo, mesmo diante das transformações do tempo. Cada conto, cada palavra guardada e passada adiante, é um gesto de preservação cultural — e uma semente lançada para o futuro.

A ENTEADA E O PÉ DE ARROZ

Um conto maravilhoso da literatura oral, narrado pelo ferroviário Izaías A. de Souza.

“Tinha uma menininha que morria de saudade da mãe dela, porque ela tinha morrido. E ela morava com uma madrasta muito malvada, e o pai dela viajava muito. Mas a menina era boazinha, mas era muito pequenininha, muito magrinha e não conseguia fazer as coisas direito, que não dava conta. Aí, um dia, a madrasta falou bem brava:

-Menina, eu vou sair e você vai ficar cuidando do pé de arroz. O seu pai não quer que acontece nada com esse pé de arroz, tem que cuidar por causa do passarinho! Se acontecer alguma coisa com o pé de arroz, você vai ver o que é bom! Você vai ver, entendeu?

E a menininha, coitada, foi cuidar do pé de arroz. Colocou uma cadeira perto do pé de arroz e ficou olhando, olhando, olhando… Ela achava tão bonito os passarinho avoando no céu, bem alto. E ficou ali olhando. Mas aí, né, ela não conseguia mais ficar olhando, de tão cansada, de tanto trabalhar. Ela era pequenininha, né? E aí, ela dormiu sem querer. Aí, né, os passarinho veio tudo, voando, chegou no pé de arroz e comeu tudo, acabou com tudo e a menininha dormindo, coitada. Quando a madrasta chegou, que ela viu aquela passarinhada e a enteada dormindo, vixi, aí ela fez aquele pampeiro danado! Bateu na menina, judiou, acabou com a menina. Mas aí, né, ela ficou com medo porque se o pai chegasse e visse a menina toda machucada, ele ia, né? Então, o quê que ela fez? Pegou a menininha, né, e enterrou ela viva! Já pensou? Enterrou ela viva, coitadinho, a menininha. Depois, quando o pai chegou de viagem, a primeira coisa que ele perguntou foi da filhinha dele. Ele não viu a filhinha dele, então perguntou, ele falou:

-Cadê a minha filhinha?

Mas a madrasta tentou mentir, ela era mentirosa, queria agradar o marido. Tentou mentir e falou que ela tava brincando lá fora, mas aí depois, demorou e aí ela disse que não sabia onde que tava a menininha. E o pai mandou todo mundo procurar pela filha. Mandou procurar, procuraram, procuraram, procuraram, e aí, né, aquele espanto gera! Os homens encontraram a coitadinho enterrada! Enterrada no quintal, já pensou? Quando trouxeram a menininha, parecia que ela tava só dormindo, os olhinhos fechados, colocaram na mesa, as mãozinhas cruzadas no peito, parecia que tava dormindo, tão linda a menina, coitada, indefesa de tudo! Mas aí, né, o pai queria saber quem tinha feito tamanha barbaridade com a sua filhinha, ele desesperado, mas queria saber a verdade. E a madrasta lá, na maior inocência, chorando, parecendo que tava sofrendo, né? Fazendo, né, daquele jeito, fingindo. E o marido nem desconfiava. Mandou testar todo mundo, na hora do enterro, e aí, né, quando tava todo mundo lá, reuniu todo mundo, e aí mandou cada um, de um por um, né, pra chegar perto do corpo e aí, ia testar todo mundo. Quando chegou o primeiro homem e cortou um pedacinho do cabelinho da menininha, ela abriu o olho e cantou, olhando, né, cantou assim:

-Não me corte meu cabelinho, ó capanga do meu pai, foi a madrasta que me enterrou, xô, xô, passarinho do arroz!

Aí, né, foi o segundo, chegou perto, né, cortou um pedacinho da orelhinha dela, mas eles cortava com dó, tinha muita dó da menininha, aí ela abriu de novo o olho e cantou de novo, cantou de novo assim:

-Não me corte minha orelhinha, ó capanga do meu pai, foi a madrasta que me enterrou, xô, xô, passarinho do arroz!

E assim foi, né, aquele sofrimento, todo mundo tinha que ir até o corpo, aí veio o outro, né? E tudo igual, ele cortou um pedacinho do nariz dela, e ela, né, cantou, aí ela cantou também:

-Não me corte meu narizinho, ó capanga do meu pai, foi a madrasta que me enterrou, xô, xô, passarinho do arroz!

E assim foi indo, foi, foi, foi… E aí, né, cada vez que ela cantava, a madrasta foi ficando com medo, com aquele medo, pra não descobrir a verdade, quando chegou a vez dela, né, que ela já tava apavorada, quando chegou a vez dela, ela tava morrendo de medo, ela foi até perto do corpo, mas ela tava com medo, então ela só chegou assim meio afastada, pegou um pedacinho do sapato da menina, mas a menininha abriu o o/ho e levantou pra o/har pra ela, né, levantou e cantou:

-Não me corte meu sapatinho, ó madrasta do meu pai, foi a senhora que me enterrou, xô, xô, passarinho do arroz!

E aí, né, todo mundo descobriu, todo mundo, e foi assim a historinha. Essa a gente conta, a gente arrepia tudo, né?”

Encerramento

Os contos populares que percorrem os caminhos do Cerrado são mais do que narrativas passageiras. São parte de um patrimônio imaterial que vive na memória, na fala e no coração do povo. Carregam em si a beleza do improviso, a sabedoria dos mais velhos e o encanto das palavras que resistem ao tempo. Cada história, por mais simples que pareça, é um elo que une passado, presente e futuro — um fio invisível que costura a identidade de comunidades inteiras.

Valorizar essas histórias é também valorizar quem as conta e o modo de vida que as sustenta. Escutar com atenção, registrar com carinho e repassar com verdade são formas de manter acesa a chama dessa tradição tão rica. Que os leitores se tornem também guardiões dessas memórias, repassando os causos que ouviram dos avós, dos vizinhos, dos andarilhos que cruzam os caminhos de terra com a alma cheia de palavras.

Porque no Cerrado, o silêncio da trilha nunca é vazio — ele guarda vozes que o vento leva e traz, esperando apenas um ouvido atento para recomeçar a história.

Por onde o pé pisa, a palavra ecoa. E cada caminho guarda um conto à espera de quem escute.

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Guardadores de Palavras: Mestres da Oralidade nas Comunidades do Cerrado https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/guardadores-de-palavras-mestres-da-oralidade-nas-comunidades-do-cerrado/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/guardadores-de-palavras-mestres-da-oralidade-nas-comunidades-do-cerrado/#respond Mon, 19 May 2025 02:56:08 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=113 A oralidade, mais do que uma forma de comunicação, é um modo de existência para muitas comunidades tradicionais do Cerrado. É por meio dela que se compartilham histórias de origem, ensinamentos sobre a natureza, modos de rezar, curar e viver em coletividade. Em territórios aonde o livro raramente chega e a escrita não é a principal forma de registro, a fala se torna um elo vital entre passado, presente e futuro.

Os guardadores de palavras têm um papel essencial nesse processo. Eles não apenas narram causos ou entoam cantigas, mas cultivam a memória coletiva e fortalecem a identidade cultural dos seus povos. Os narradores das histórias orais trazem como pano de fundo, as cores locais.

Pessoas comuns à primeira vista, mas que carregam em suas memórias e vozes um tesouro imaterial construído ao longo de gerações. Seja em uma roda de conversa sob o pé de manga ou em uma celebração religiosa, sua presença garante que as raízes não se percam diante das transformações do mundo. São eles que mantêm viva a alma do Cerrado, em cada palavra cuidadosamente guardada e compartilhada.

Os contadores de histórias orais

Guardadores de palavras são pessoas que, através da fala, conservam e transmitem os saberes, histórias e tradições de seus povos. Não são apenas contadores de histórias, mas verdadeiros portadores de uma herança cultural que resiste ao tempo e às mudanças. O termo carrega um sentido simbólico profundo: guardar palavras é, antes de tudo, proteger mundos inteiros que vivem na linguagem oral.

Nas comunidades do Cerrado, essas figuras aparecem de diferentes formas. Podem ser anciãos que compartilham vivências e lições; contadores de causos que narram acontecimentos com humor e sabedoria; rezadores que conduzem orações e rituais, muitas vezes em línguas ancestrais; ou cantadores que embalam a vida cotidiana com cantigas tradicionais. Todos têm em comum o dom da palavra como ponte entre gerações.

A função social dos guardadores de palavras é essencial. Eles mantêm viva a memória coletiva, preservam o modo de ser de suas comunidades e fortalecem os vínculos entre as pessoas. Suas vozes carregam não só o conteúdo das histórias, mas também os sentimentos, os valores e o ritmo próprio da cultura local. São guardiões da identidade e da sabedoria popular, pilares invisíveis que sustentam a riqueza cultural do Cerrado.

Personagens reais: quem são esses Mestres?

Em meio às paisagens do Cerrado, entre as veredas e os chapadões, vivem personagens que mantêm acesa a chama da oralidade. São mestres populares, guardadores de palavras, cuja sabedoria não foi aprendida em livros, mas herdada pelo convívio, pela escuta e pela vivência comunitária.

A seguir, apresentaremos alguns exemplos entrevistados no leste de Mato Grosso do Sul, exímios contadores de histórias orais e constam na dissertação de Mestrado intitulada “Literatura oral: as narrativas populares no leste de Mato Grosso do Sul”(UFMS), com o objetivo de resgatar e registrar as narrativas orais a partir da década de 2000:

Abraão F. da Silva (1912): popularmente conhecido como Bento, de origem negra, conheceu um Brasil ainda sertão, ainda na adolescência trabalhou na roça e se aposentou como ferroviário. Sua sogra era uma benzedeira muito estimada e Bento contou muitas histórias transmitidas por seus pais. Narrou as histórias: nego d’água, nego d’água no rio Pardo, o compadre e a comadre.

Anísia Gomes F. Oliveira (1919): sua mãe era alagoana e seu pai pernambucano, migrou para Mato Grosso e se casou com um ferroviário. Mantém vivas histórias de seus pais e a cultura nordestina, inclusive, afirma que uma de suas primas fugiu para acompanhar o cunhado viúvo de Lampião. Narrou histórias sobre Lampião, Padre Cícero, lobisomem, luto pela cachorra, o burro do compadre, o menino e o poço, como quebrar o encanto do lobisomem, a cura.

Armando L. Pereira (1925): de origem holandesa, seus pais eram mineiros, migraram até se fixarem na divisa entre Mato Grosso e São Paulo. Na região de cerrado, foi dono da maior loja de secos e molhados, o que lhe permitiu relacionar-se com pessoas de todas as classes, do mais rico fazendeiro ao mais temido bandoleiro da região. Narrou as histórias: o Zé da onça, fazenda do Zeca Vida, Camisa de Couro, o fogo sobre o rio.

Eunice P. da Silva (1941): popularmente conhecida como dona Preta, seu pai era mineiro e sua mãe de origens baianas. Neta de Mané Preto, acreditamos que seu avô vivenciou a época escravagista. Seu marido era ferroviário, por isso dona Preta morou em várias cidades de Mato Grosso do Sul e interior de São Paulo, nas chamadas “turmas” da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Narrou as histórias: a cachorra na quaresma, quem era o lobisomem, a cobra maminha, o choro da criança, medo de lobisomem, o finado que virou onça, o padeiro da madrugada.

Francisco Gomes (1934): pescador muito conhecido da Colônia de Pescadores de Jupiá, Chicão nasceu na Bahia, migrou para o estado de São Paulo até se estabelecer às margens do rio Paraná. Simpático e risonho, Chicão se declara cético diante dos causos mentirosos, mesmo assim é um exímio contador de histórias orais. Narrou as histórias: o túnel do palácio de D. Pedro, o compadre caboclo d’água, caboclo d’água ou ariranha, como pescar o jaú, Saci Pererê ou morcego vampiro.

Hildebrando Lopes (1930): seu pai era imigrante português e sua mãe paulista. Aposentou-se como ferroviário, mas afirma que passou a maior parte de sua vida num barco pescando. Observador, seu Brando narrou histórias contadas por seus pais e as vivenciadas com amigos de pescaria. Narrou as histórias sobre: aparição na caçada, a onça na fazenda Serrinha, a cigarrinha, caçadas e pescarias.

Ismael Cabanha (1922): de origem paraguaia, aposentou-se como ferroviário e afirma que vivenciou a época em que o interior de Mato Grosso do Sul se reduzia a pequenas vilas localizadas na imensidão do cerrado e matas virgens, quando ainda se preservava a tradição de contar histórias para as crianças, após um dia de trabalho. Narrou as histórias: Maria Preta conta histórias, o homem na beira do rio, Saci Pererê, o turco da água e o Zé Lata, caçadas e pescarias.

Izaías Antônio de Souza (1931): Narrou as histórias sobre: enterro (o pote de ouro), a enteada e o pé de arroz, a bola de fogo, caçada na Sexta-feira da Paixão, o pé de arruda, o enterro (pote de ouro).

José Moraes (1938): residente na Colônia de Pescadores de Jupiá, às margens do rio Paraná, Zé Moraes é pescador profissional. Apaixonado pelas matas e pelos rios, exerceu outros ofícios em fazendas, lavouras, fábricas, até exercer finalmente a profissão de pescador. É um grande contador de histórias, com ênfase ao aspecto cômico. Narrou as histórias sobre: a onça sussuarana no Jupiazinho, jararacuçu na lagoa do Jacaré, o jaú, sucuri na lagoa do jacaré, capitão do campo.

Jurandir Queiroz (1938): de origem negra e pais baianos, afirma que seus pais migraram para São Paulo atraídos pelo garimpo, trabalhando em cafezais e depois como ferroviário. Jurandir é militar reformado e gosta de contar histórias, inclusive as que vieram na bagagem cultural de seus ancestrais. Narrou as histórias: bigamia e o enterro, o abacaxi de ouro, enterro para o aleijadinho, a anta e o caipora, Pé de Garrafa, o jaú que comia gente, nego d’água morto, bola de fogo, despedida do marido morto.

Wandwald A. de Souza (1938): sua família é composta por imigrantes europeus, negros e índios, o pai era cuiabano e a mãe sul-mato-grossense.  Wando aposentou-se como ferroviário e devido à profissão, residiu a maior parte de sua vida em outras localidades. E na juventude, sua paixão era pescar com parentes e amigos. Com sua vivência, Wando tornou-se um grande narrador de histórias.  Narrou as histórias: as ressurreições da mulher do Dominguinhos, o lobisomem perto da lagoa, o caçador e a cobra sucuri, onça e zagaia, o pulo do boi.

Essa pequena síntese retratando os entrevistados na década de 2000, traz também traços das cores locais e do contexto histórico: lembrando que o interesse militar e econômico na região.

Contexto histórico.

No início do século XX, o leste de Mato Grosso do Sul começou a viver uma transformação marcada pela presença do Exército Brasileiro e pela construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Essa região, até então marcada por longas extensões de matas e cerrado, ocupada por povos indígenas, pequenos agricultores e comunidades tradicionais, passou a ser alvo de uma ocupação estratégica e econômica.

A atuação do Exército esteve ligada principalmente à defesa das fronteiras e ao controle de uma área considerada sensível, devido à proximidade com o Paraguai e à memória ainda recente da Guerra da Tríplice Aliança. A instalação de unidades militares, como em Campo Grande e Três Lagoas, trouxe uma presença constante do poder central, reforçando a soberania nacional em uma região que, até então, vivia mais conectada com rotas comerciais do interior do que com o restante do Brasil.

Paralelamente, a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, iniciada em 1905, abriu caminhos físicos e simbólicos. A ferrovia ligava Bauru (SP) a Corumbá (MS), cortando o leste sul-mato-grossense e facilitando o escoamento da produção agropecuária, além de estimular a vinda de migrantes de diversas partes do país. O município de Três Lagoas, por exemplo, surgiu e cresceu ao redor dos trilhos, tornando-se um dos principais pontos de conexão entre o Sudeste e o Centro-Oeste.

Esse processo de ocupação, marcado por interesses militares e econômicos, teve consequências profundas para os povos originários e as populações locais. O avanço da ferrovia e da estrutura do Estado alterou paisagens, deslocou comunidades e introduziu novas dinâmicas sociais, deixando marcas que ainda hoje fazem parte da história e da identidade do Cerrado sul-mato-grossense.

Transmissão do saber: como a oralidade resiste.

A oralidade é um fio invisível que atravessa gerações nas comunidades do Cerrado. É na conversa entre avós e netos, nos cantos entoados durante as festas e nas preces murmuradas em noites de celebração que o saber tradicional se mantém vivo. Longe dos livros e dos meios formais, esse conhecimento resiste porque é partilhado com afeto e sentido.

Dentro das famílias, a transmissão acontece no cotidiano, muitas vezes sem que se perceba. Uma história contada antes de dormir, um ensinamento passado enquanto se prepara o alimento, uma cantiga que embala o trabalho na roça. São formas de ensinar e aprender que valorizam o tempo, a escuta e a convivência.

As festas populares e os rituais religiosos reforçam esse ciclo. Em celebrações como a Folia de Reis, a Festa do Divino ou os rituais indígenas de cura e passagem, a palavra ganha força coletiva. Cânticos, ladainhas, orações e narrativas sagradas atravessam os espaços e reafirmam a identidade de um povo. Esses encontros comunitários não apenas fortalecem os laços sociais, mas também servem como escolas vivas de cultura.

Desafios na atualidade.

No entanto, a oralidade enfrenta hoje desafios importantes. A urbanização acelerada, a migração dos jovens para os centros urbanos, a perda de línguas indígenas e a influência de padrões culturais externos colocam em risco muitos desses saberes. A fala dos antigos, antes tão valorizada, muitas vezes é vista como ultrapassada ou irrelevante diante das lógicas do mundo moderno.

Mesmo assim, há resistência. Em muitas comunidades, iniciativas de valorização da cultura local, projetos escolares, pesquisas acadêmicas das universidades e ações de jovens comprometidos com sua história têm contribuído para manter viva a tradição oral. A palavra, quando respeitada e ouvida, continua sendo semente. E é por meio dela que o Cerrado segue contando suas histórias, ensinando seus caminhos e afirmando sua existência.

Conclusão.

Os guardadores de palavras são mais do que narradores; são pilares que sustentam a memória, a sabedoria e a identidade das comunidades do Cerrado. Através de suas vozes, ecos do passado continuam a ressoar no presente, carregando ensinamentos, crenças, modos de viver e formas de ver o mundo que resistem mesmo diante das mudanças mais intensas.

Valorizar esses mestres da oralidade é reconhecer a importância de ouvir com atenção, respeito e humildade. Cada história contada, cada reza sussurrada, cada canto repetido carrega não apenas informação, mas sentimento, ritmo e pertencimento. A escuta ativa, nesse contexto, não é passiva; é um ato de acolhimento e também de resistência cultural.

Em tempos de ruído e pressa, é preciso reaprender a ouvir. Ouvir os mais velhos, os anônimos, os que vivem próximos da terra e do silêncio. Porque ouvir é também uma forma de preservar o Cerrado — não apenas sua fauna e flora, mas sua alma, suas palavras, seus caminhos invisíveis de saber. Que possamos, com o coração aberto, seguir ouvindo e guardando o que nos faz continuar.

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O Tempo do Susto: Narrativas de Encontros com o Desconhecido no Cerrado https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/o-tempo-do-susto-narrativas-de-encontros-com-o-desconhecido-no-cerrado/ https://encantosdocerrado.com/2025/05/18/o-tempo-do-susto-narrativas-de-encontros-com-o-desconhecido-no-cerrado/#respond Sun, 18 May 2025 23:57:56 +0000 https://encantosdocerrado.com/?p=108 No coração do Cerrado, quando o dia começa a se despedir e o céu se tinge de tons entre o dourado e o roxo, há um momento em que tudo parece se suspender. É nesse intervalo entre a luz e a sombra que começa o chamado tempo do susto. Os antigos dizem que é nessa hora que o mundo visível se abre para os mistérios do invisível, quando o silêncio dos matos guarda sussurros que só quem vive por ali sabe decifrar.

Não é raro ouvir quem diga que viu uma luz rasteira cruzando a estrada de terra, ou que ouviu passos no mato quando não havia ninguém por perto. Tem quem jure de pés juntos que viu uma criança aparecer e sumir sem deixar rastro, ou uma cobra que falava com voz de gente. Esses encontros, muitas vezes contados com olhos arregalados e voz baixa, ganham vida nas rodas de conversa sob o alpendre ou ao redor do fogo.

Esses causos, como são chamados, fazem parte da alma do Cerrado. Não são apenas histórias de medo, mas sim experiências que misturam espanto e respeito pelo desconhecido. Neles, o susto não é um simples pavor. É um estado de atenção profunda, um alerta do corpo e do espírito diante do que foge à lógica e ao costume. Muitas vezes, quem passa por esse tempo do susto sai diferente, como se tivesse cruzado uma fronteira invisível entre o mundo comum e o encantado.

O Cerrado, com sua vastidão, seus sons noturnos e suas veredas escondidas, é um cenário fértil para o mistério. E mesmo em tempos de redes sociais e lanternas de celular, o tempo do susto continua vivo. Ele se atualiza nas novas formas de contar, mas carrega a mesma essência: um convite para lembrar que nem tudo se explica, e que o desconhecido também faz parte do que nos torna humanos.

Contar e ouvir essas histórias é manter acesa a chama da tradição. É reconhecer que, no Cerrado, o medo não é inimigo, mas companheiro das noites escuras e das caminhadas solitárias. É ele quem nos faz escutar melhor o farfalhar das folhas, o pio da coruja, o assovio do vento que passa e deixa no ar a pergunta que nunca se cala: o que será que há por trás da mata fechada?

O que é o Tempo do Susto?

No imaginário popular do Cerrado e de outras regiões interiores do Brasil, o tempo do susto é mais do que um simples momento do dia. Ele carrega um sentido ancestral, moldado por gerações que viveram em contato direto com a natureza e seus mistérios. Trata-se de um período transitório, marcado pelo fim da tarde e o início da noite, quando a luz começa a enfraquecer e as sombras se alongam pelos caminhos, pelos quintais e pelos matos fechados.

Nesse intervalo entre o claro e o escuro, as coisas parecem mudar de forma. A paisagem familiar se transforma. Os sons da natureza ganham outra intensidade, os animais noturnos despertam, e o corpo sente uma tensão inexplicável. É como se o mundo natural se abrisse para outra dimensão, onde as certezas do cotidiano não têm mais tanta força. Esse é o tempo em que os antigos dizem que o invisível circula mais livremente.

O tempo do susto também tem raízes simbólicas ligadas aos ciclos da vida e da morte, ao momento de passagem entre um estado e outro. Assim como o entardecer anuncia o fim do dia, ele também anuncia o começo da noite, com tudo o que ela carrega de encantamento e temor. Por isso, muitas pessoas evitam sair nesse horário ou fazer certos rituais. É comum se ouvir que nesse tempo não se deve chamar pelo nome de quem está longe, nem assobiar, nem cruzar caminhos sem antes fazer o sinal da cruz.

Mais do que superstição, essas práticas revelam um saber tradicional que entende a natureza como viva, sagrada e imprevisível. O tempo do susto não é apenas um espaço de medo, mas de respeito. Ele ensina que há momentos em que o silêncio fala mais alto, e que certos encontros só acontecem quando o mundo está entre a luz e a escuridão.

O Cerrado como território do desconhecido

O Cerrado é uma paisagem que impressiona pelo contraste entre sua aparente simplicidade e a complexidade de seus mistérios. Extenso, seco em boa parte do ano, pontuado por árvores altas e campos abertos, ele guarda uma atmosfera única, onde a presença humana é sempre pequena diante da vastidão da terra. É justamente nesse cenário que o desconhecido encontra espaço para habitar, crescer e se insinuar no cotidiano das pessoas que vivem em contato direto com o mato.

A solidão típica das áreas rurais, onde as casas ficam distantes umas das outras e o silêncio é cortado apenas pelos sons da natureza, faz com que os sentidos fiquem mais atentos. À noite, qualquer estalo no mato pode parecer mais do que um simples animal passando. O vento, ao soprar entre as folhas secas, se transforma em sussurro. A paisagem, que durante o dia parece segura e conhecida, à noite se torna território de dúvida, onde tudo pode acontecer.

Nas crenças populares do Cerrado, o natural e o sobrenatural não são opostos. Eles coexistem. A árvore frondosa pode ser morada de um espírito. O riacho claro pode esconder um encantado. A trilha esquecida pode levar a um encontro com algo que não se explica. Não se trata de folclore distante, mas de uma forma viva de perceber o mundo, passada de geração em geração. Para quem vive nesses territórios, respeitar o desconhecido é uma forma de sabedoria.

O medo, nesse contexto, não é um sentimento inútil. Ele molda comportamentos, ensina limites e fortalece laços. Histórias de assombração, encontros com o invisível ou sinais deixados pelo além são formas de alertar, proteger e também de unir. Ao compartilhar esses relatos, as comunidades constroem uma identidade comum, marcada pela convivência com o imprevisível. O medo, no Cerrado, é também um modo de se pertencer.

Narrativas e causos de susto

No Cerrado, as histórias de susto são tão presentes quanto o cheiro da terra molhada ou o canto da coruja na madrugada. Elas surgem em conversas ao pé do fogão, nas varandas durante o entardecer ou nas longas caminhadas pelas trilhas de terra. Não são apenas invenções para passar o tempo. São memórias vivas, transmitidas com emoção e respeito, muitas vezes acompanhadas por gestos contidos e olhares atentos, como se quem conta ainda sentisse o peso do que viveu.

Há quem diga ter visto uma luz misteriosa cruzando a estrada, pequena como um vaga-lume, mas rápida demais para ser explicada. Outros falam de uma mulher vestida de branco que aparece perto dos riachos e some assim que alguém tenta se aproximar. Tem também o relato antigo de um boi encantado, que surgia apenas nas noites de lua cheia, com olhos de fogo e passo silencioso. Cada comunidade guarda seus próprios causos, e mesmo que alguns mudem com o tempo, todos conservam a essência do mistério.

O modo de contar essas histórias é parte fundamental da experiência. Quem narra muitas vezes o faz com pausa, mudando o tom da voz, observando a reação dos ouvintes. O silêncio entre uma frase e outra ajuda a criar o clima certo. É como se o tempo do susto se repetisse naquele momento, fazendo com que todos ali voltassem a sentir o arrepio na espinha. A oralidade transforma essas narrativas em encontros vivos com o passado e com o desconhecido.

Explicações não faltam. Para uns, é coisa do outro mundo. Para outros, são sinais de que algo aconteceu e ficou mal resolvido. Há ainda quem veja nessas histórias um chamado da própria natureza, querendo lembrar que não se deve atravessar seus caminhos sem respeito. Independentemente da crença, os causos de susto seguem circulando, ganhando força a cada geração.

O valor simbólico do medo

No Cerrado, o medo não é visto apenas como fraqueza ou perturbação. Ele carrega um valor simbólico profundo, entrelaçado à sabedoria popular e à maneira como as pessoas aprendem a se orientar no mundo. Sentir medo diante do desconhecido é sinal de que algo merece atenção. É uma forma de escuta, um alerta do corpo e da alma. Nas comunidades rurais, esse sentimento é muitas vezes encarado como um ensinamento.

Passar por um susto, sobretudo durante o tempo em que o dia se despede, é quase um rito de passagem. Crianças crescem ouvindo os causos contados pelos mais velhos e, mais cedo ou mais tarde, acabam vivendo seus próprios encontros com o inesperado. O medo serve então como guia: mostra o limite entre o que se sabe e o que ainda está por entender. Ensina a caminhar com cuidado, a observar sinais, a respeitar o que não se vê.

Essas experiências, além de pessoais, são coletivas. O medo une. Reúne famílias em volta da mesa ou do fogo, incentiva conversas longas em noites silenciosas, fortalece os laços com o território e com os antepassados. Contar histórias de susto é também um modo de passar adiante conselhos, normas de convivência e alertas de proteção. É a tradição vestida de assombro.

No fundo, essas narrativas mostram que o medo não é apenas paralisia. Ele é também uma porta para o encantamento. Porque no Cerrado, temer não significa fugir, mas reconhecer que há mistérios maiores do que nós. E talvez seja justamente essa reverência que mantém viva a conexão entre as pessoas e a terra que habitam.

Causos de assombração: Aviso de morte

Por Sebastião dos Santos (1938), filho de pai carioca e mãe paulista, ambos de origem negra. Aos 65 anos de idade, mantinha o hábito de se reunir com os vizinhos ferroviários no bairro Feijão Queimado para compartilhar suas histórias.

“Eu tive uma visão. Em 1950, a minha mãe fazia trinta anos que não via a família dela,  fazia trinta anos que não sabia notícias da família dela e ela, pelo um ferroviário lá de Bauru, ela soube da família dela. Então, em 1950, ela foi encontrar com a família. E ela ficou uns quinze dias por lá, passou o Natal e tudo. Quando foi no dia 05 de janeiro de 1950 ela veio a falecer, ela teve um derrame e veio a falecer. E quando ela viajou, ela despediu de mim, né?

-Ah, filho, eu vou e talvez eu não volto, talvez eu vá e não volto mais.

Até despediu e chorando, chorou e eu também chorei muito e isso aí foi já no dia 20 de dezembro. Aí eu fui com a minha irmã pra outra cidade, a minha irmã ia sair e pediu pra mim ficar tomando conta da casa. Aí eu fiquei lá e quando foi no dia 31 de dezembro, nós fomos na casa de uns amigos, jantamos lá e voltamos. Era mais ou menos uma hora da manhã, quando, lá na cidade não tinha luz elétrica, né? Daí meu cunhado falou:

-Ó, tá muito calor, eu vou me deitar no quarto de lá e você deita no quarto nosso, né? E deixa a porta aberta que tá muito calor.

Mas eu tinha medo de dormir com a porta aberta e fechei a porta. E era vitrô, né? E tava uma lua dara e tava clareando dentro do quarto. E o meu cunhado pegou uma lamparina, você sabe o que é uma lamparina, né? De querosene. Ele fumava cigarro de palha e fez um cigarro de palha. E a porta do quarto que eu estava e a porta do quarto que ele estava era no mesmo rumo, só que tinha uma sala que dividia, né, a distância, uns quatro metros mais ou menos.  Aí, eu acabei de me  deitar, a porta eu vi o trinco da porta fazer assim e abrir, a maçaneta, né? A porta abriu, entrou o caixão, aqueles vultos carregando o caixão. E eu via por baixo… E eu tava com a cabeceira da cama pra lá e os pés da cama pro lado da porta. E por baixo do caixão eu via meu cunhado com a lamparina acesa e fumando o cigarro; e aqueles vultos entrando com o caixão dentro do meu quarto. Aí, eu cobri a cabeça… Até uns anos pra cá que eu não cubro mais a cabeça, depois que eu casei com a minha mulher, daí eu larguei de cobrir a cabeça. Quando foi no dia 5 a minha mãe veio a falecer. Ela veio me avisar que ela ia morrer. Então foi uma das coisas que me aconteceu.”

O Tempo do Susto na contemporaneidade

Mesmo em tempos de luz elétrica, redes sociais e tecnologia no bolso, o tempo do susto não perdeu seu lugar. Ele continua habitando as paisagens do Cerrado e se atualiza nas formas de contar e sentir. As histórias que antes circulavam apenas nas rodas de prosa agora encontram espaço em podcasts, vídeos de causos e publicações nas redes, alcançando novos públicos sem perder a essência do mistério.

Nas comunidades rurais, os mais velhos ainda guardam relatos de encontros estranhos e sinais do invisível. E mesmo entre os mais jovens, há quem se emocione ao ouvir uma história bem contada, com aquele silêncio pesado entre uma frase e outra. O arrepio, a dúvida, o encantamento — esses sentimentos atravessam gerações, conectando o passado ao presente.

Convivendo com o invisível.

A professora Eunice Pereira da Silva (1941) conta muitas histórias de família e sobre uma convivência com o invisível, interpretadas como previsões futuras ou mesmo mantendo contato com os que já partiram dessa vida, os entes queridos. Segundo ela, “quando o vô morreu, a gente lá sentado conversando e passava o chinelo dele pra lá e pra cá. E ele andava arrastando o chinelo e a gente ouvia perfeitamente. É… ele passava arrastando o chinelinho, ia na cozinha e voltava. Ninguém via ninguém, só ouvia o chinelo arrastando pra lá e pra cá.”

Hoje, muitos também enxergam essas narrativas como parte do patrimônio imaterial do Cerrado. São vozes que revelam não só o medo, mas também a sensibilidade com que os moradores da região observam o mundo. Em tempos de pressa e excesso de informação, escutar um causo de susto pode ser um convite à escuta mais atenta, à pausa e ao respeito pelas coisas que não têm explicação imediata.

Além disso, há uma redescoberta do valor simbólico dessas histórias. Escritores, pesquisadores e artistas têm voltado os olhos para a oralidade popular como fonte de criação e resistência cultural. O tempo do susto, assim, ganha novos espaços sem deixar de pertencer à terra, ao entardecer, ao sussurro do vento nas veredas. Ele continua sendo uma presença discreta, mas marcante — uma memória viva do Cerrado que ainda sabe se espantar.

Conclusão

O tempo do susto é mais do que uma expressão popular ou um intervalo entre o dia e a noite. É uma chave para compreender como as pessoas do Cerrado se relacionam com o mundo ao redor — com a natureza, com o desconhecido e com aquilo que não se explica, mas se sente. É nesse momento de transição, quando a luz se despede e o silêncio se impõe, que surgem as histórias que atravessam gerações e moldam identidades.

Preservar essas narrativas é também preservar uma forma única de olhar o mundo. O medo, nessas terras, não é apenas temor. É respeito, sabedoria e memória. Cada causo contado à beira do fogo, cada relato sussurrado na varanda, é parte de um saber ancestral que resiste ao tempo.

Em um Cerrado que muda rapidamente, com suas paisagens ameaçadas e seus modos de vida em transformação, escutar e valorizar essas histórias é um gesto de cuidado. É reconhecer que o encantamento ainda existe, e que há sabedoria nos silêncios, nos sustos e nas sombras da mata.

Que cada leitor possa, ao final deste texto, lembrar-se de um causo vivido ou ouvido. E que, ao próximo entardecer, saiba perceber com outros olhos o momento em que o mundo parece parar — quando começa, de novo, o tempo do susto.

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